(Ensaio, por Alexandre Bertoldo)
"Temos vivido em Moçambique nos últimos anos buscando colocar em prática alguns dos conceitos fundamentais da Agricultura Natural no trabalho com a terra e as pessoas. Depois de algum tempo compartilhando saberes e aprendizados, deparamo-nos com o conceito de machamba. Uma rápida consulta aos dicionários da língua portuguesa trará como definição de machamba "aquele espaço de terra onde se pratica a agricultura de subsistência ou familiar". Podemos assegurar, contudo, que esta definição nem de longe consegue traduzir o verdadeiro espirito com o qual o povo africano, em especial o moçambicano, trabalha a terra da qual ele faz parte há milhares de anos.
A machamba é uma parte integrante do modo de vida da maioria das pessoas e das famílias moçambicanas. Independentemente da capacidade de ser adequadamente suprida ou não de recursos naturais, como por exemplo a água, ela chega a ser considerada por muitos como um membro da própria família. Por isso não é difícil encontrar na periferia da capital Maputo, pessoas, na sua maioria mulheres, cultivando suas machambas ainda que contando apenas com parcos pés de milho ou feijão-nhemba, uma verdadeira iguaria da culinária local.
Mesmo no caso de famílias que há anos se deslocaram do campo para a cidade, o ato de cultivar a terra permanece vivo, tradição esta levada às novas gerações pelos mais velhos, cujo sangue ainda parece permanecer suficientemente puro das influências e modismos das modernidades e consumismos das grandes cidades. São estas pessoas que parecem tentar perpetuar um estilo de vida que as facilidades da vida moderna insistem em tentar esquecer e até mesmo desmerecer. Contudo, parece haver um espirito latente que simplesmente leva as pessoas a mexerem a terra, muitas vezes numa espécie de agricultura psicológica, como certa vez definiu um amigo moçambicano.
Saindo da capital, já a algumas dezenas de quilômetros de distância, nos deparamos com uma outra realidade. As pessoas ainda estão trabalhando a terra! Apesar da pouca água e também da falta de disponibilidade de solos melhores, as pessoas continuam seu trabalho árduo de cultivar o chão, muito dele maculado por gerações de guerras e conflitos, numa jornada quase espiritual de tentar prover o próprio alimento. O povo africano não perdeu de todo os seus laços com a Mãe Terra, apesar, como já dissemos, das inúmeras tentações e facilidades que a vida moderna oferece. Mas por outro lado, não é fácil cultivar o próprio alimento, assim como não é fácil reaprender a linguagem ancestral que um dia uniu os seres humanos à Grande Natureza da qual somos e sempre seremos parte. Por isso mesmo, por não se recordarem mais dessa linguagem universal, as pessoas que cuidam do chão, apesar de seus incansáveis esforços, parecem que estão pouco a pouco perdendo esses laços que as prendem, desde eras remotas, ao Caminho da Grande Natureza.
No mundo todo é cada vez maior o numero de culturas agrícolas exóticas que o império do consumismo obriga aos agricultores a se aventurarem num extenuante trabalho de cultivarem plantas que nada tem a ver com o meio ambiente no qual esses mesmos agricultores vivem. E por mais irônico que pareça, este é um dos fatores que mais tem contribuído para o declínio da produtividade agrícola em várias partes do mundo. Apesar do esforço de mexer a terra, os agricultores estão sendo levados a um caminho ilusório, em que procuram trabalhar a terra até a ultima gota de suor, ou de sangue. A razão para isso é simples: quando se tenta cultivar plantas que não estão ou não conseguem se adaptar naturalmente numa determinada região, costuma-se aumentar o nível de artificialidade do sistema. Dessa forma, os cientistas acabam promovendo o melhoramento genético de várias culturas como tentativa para fazer com que elas produzam num ambiente que naturalmente não seria o seu. Uma das consequências desse processo acaba sendo o enfraquecimento das plantas e uma crescente dependência de fertilizantes químicos prontamente disponíveis para o sistema fisiológico das culturas. Por sua vez, o uso de adubação química acaba por induzir graves desequilíbrios nutricionais nas plantas tornando-as fracas e suscetíveis ao ataque de pragas. É nessa hora que entram em cena os defensivos agrícolas ou agrotóxicos. E não encerra por ai, pois muitas vezes as culturas estrangeiras possuem um metabolismo que as desfavorecem se comparado com o metabolismo das espécies nativas, o que torna o sistema ainda mais dependente de insumos artificiais, muitas vezes vindos de países estrangeiros e impostos aos agricultores locais.
Mas apesar de todos os percalços pelos quais passa o trabalho do homem do campo, apesar dessa disfunção da lógica do trabalho com a terra imposta aos camponeses de todo o mundo, o espirito da machamba sobrevive! E nesse momento, talvez isto seja o fundamental. Reconhecer a machamba não apenas como um espaço físico, mas como uma espécie de entidade viva onde a vida pulsa em seu interior e ao seu redor, projetando o fluido cósmico do qual ela se originou aos membros da família e a toda comunidade ecológica da região onde se encontra. Talvez este seja o motivo que impulsiona o trabalho com a terra, muitas vezes mesmo sem a perspectiva de uma colheita farta, mas com a esperança de que um dia a terra retribuirá toda a gratidão que a ela oferecermos. Talvez por isso o africano, em sua maioria, não pode se desfazer totalmente dos laços com a terra. Talvez sejam eles os guardiões do espírito da terra, o espírito da machamba.
Foi apenas a partir desse raciocínio que nosso trabalho com a Agricultura Natural em Moçambique deu um verdadeiro salto. Não apenas em termos de produção agrícola, mas fundamentalmente em termos da compreensão do que vem a ser o Caminho da Terra, como particularmente também gostamos de chamar a Agricultura Natural. Ao começar a perceber o espírito da machamba e sentir no dia a dia do trabalho com a terra a influência que dela sofremos e a ela promovemos, pudemos finalmente reencaminhar nossos próprios sentimentos e reencontrar a trilha que, acreditamos, nos levarão ao verdadeiro encontro com a Mãe Terra, a Grande Natureza, ou simplesmente Gaia.
A Agricultura Natural está muito além de um simples método agrícola. Isso porque, na maioria das vezes nossos cientistas, técnicos, economistas, especialistas, etc., não conseguem mensurar em suas ponderações e cálculos, um componente essencial que rege todo o trabalho com a terra: a gratidão. E foi justamente aí que conseguimos perceber o quão próximo o povo africano está da essência da Agricultura Natural, através do cuidado e do respeito à machamba.
Nossa experiência tem mostrado que o solo, e consequentemente toda a machamba, responde ao nosso sentimento de uma forma muito profunda e intensa. Temos relatos de muitas pessoas que visitam nossos campos e que depois de algum tempo desenvolvendo alguma atividade voluntária, ou mesmo após um passeio pelos nossos canteiros, dizem sentir certa vibração positiva vindo da machamba. Já tivemos esse tipo de experiência muitas e muitas vezes. E não é só isso. Depois de algum tempo dessa interação com a machamba, parece que desenvolvemos uma espécie de elo de ligação. De nossa parte, por vezes, percebemos que algo não está bem só de nos aproximarmos do campo. Por vezes, também, percebemos certa falta de brilho nas plantas e acaba não sendo difícil constatar que alguma coisa não vai bem com um ou mais funcionários do campo. Por mais incrível que pareça, não só a machamba consegue nos influenciar como também a podemos influenciar com nosso sentimento. Nosso sentimento-pensamento-ação pode interferir positiva ou negativamente no trabalho da machamba! E isso é fabuloso, pois quer dizer que podemos trilhar o caminho do sucesso com nossas culturas se mantivermos sempre uma atitude positiva e, com certeza, o sentimento de gratidão para com a Mãe Natureza está no ponto central dessa atitude.
O ato de cultivar a terra, de cuidar da machamba, de reconhecê-la como uma entidade viva, tem muito a ver com o espírito de cultuar a Mãe Terra, numa tentativa de manter puro o sangue que corre em nossas veias através da comunhão entre o trabalho no campo e os afazeres do dia a dia, como forma de materialização clara do sentimento de gratidão para com a Grande Natureza! Cabe a nós, aprendizes de agricultores naturais, percorrer esse caminho de retorno ao sentimento inicial que, um dia, uniu plenamente o ser humano ao Todo Maior."
OBSERVAÇÃO: Este texto foi aqui postato visando facilitar a compreensão do termo "machamba", tendo em vista o grande número de acessos, ao nosso Blog, oriundos de pessoas localizadas em diversas partes do mundo.
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