4.
Manejo agroflorestal
(Capítulo 4 do Módulo II da Apostila do Curso de Agricultura Natural)
Em uma
definição ampla, sistemas
agroflorestais
(SAFs) são combinações do elemento arbóreo com herbáceas e/ou
animais, organizados no espaço e/ou tempo. Por outras palavras, são
sistemas nos quais não só mantemos nossas árvores na machamba como
também plantamos muitas mais! O conceito de agroflorestas é muito
amplo e a literatura está repleta de textos e referências técnicas
sobre o assunto. Por isso, vamos nos concentrar em alguns aspectos
práticos do manejo agroflorestal quando aplicados ao conceito e
prática da Agricultura Natural. No final desta apostila, o leitor
encontrará uma série de referências bibliográficas sobre o tema
que poderá auxiliá-lo numa compreensão mais profunda desses
sistemas.
Não custa
nada repetir mais uma vez que na Agricultura Natural estamos nos
esforçando para procurar compreender e replicar algumas das leis
fundamentais da natureza. Vimos recentemente a importância da
biodiversidade e das redes de interação agroecológica na produção
natural de alimentos. Por sua vez, as árvores desempenham um papel
fundamental na manutenção das redes de sustentação da vida, e
passaremos a descrever algumas das suas funcões no manejo natural de
nossos campos e machambas.
O que é
uma árvore?
Vamos
começar abordando o tema do manejo agroflorestal de uma forma um
pouco diferente da maioria dos manuais e livros sobre o assunto. Essa
abordagem, contudo, é fruto da nossa experiência de campo no ensino
da Agricultura Natural e foi desenvolvida tendo por base as dúvidas
mais comuns de nossos alunos ao longo dos últimos anos. Nesse nosso
curso não estaremos muito presos aos conceitos acadêmicos, embora
por vezes façamos referências a eles, sempre que isso nos ajudar a
compreender um pouco mais sobre a forma natural de cultivar nossos
solos e organizar nossas quintas e machambas, numa linguagem mais
clara e, portanto, de melhor compreensão de todos.
Então,
como primeira pergunta desse tópico temos: o
que, afinal, é uma árvore? Antes
de responder a essa pergunta, vamos fazer um pequeno exercício:
Exercício:
Pegue
numa folha de papel em branco e em um lápis ou caneta e desenhe
uma árvore.
Se você,
leitor, foi honesto com esse exercício e não olhou antes as páginas
seguintes, deverá ter desenhado uma árvore mais ou menos como a da
figura abaixo:
Este é um
exercício simples mas muito elucidativo para introduzirmos as
pessoas na questão da visão
sistêmica da
natureza e do mundo. Nosso modelo educacional tradicional nos ensina
a ter uma visão compartimentada do mundo ao nosso redor. Isso quer
dizer que, de certo modo, aprendemos desde cedo a analisar somente
aquilo que conseguimos ver, deixando de lado, ao menos num primeiro
momento, aquilo que por ventura possamos estar a
sentir. O
mundo da razão científica, por vezes, acaba nos colocando em
situações em que nos é difícil enxergar com visão
além do alcance dos nossos olhos.
Portanto, se o seu desenho de árvore, num primeiro momento, não
tiver sido como o da figura a seguir, não se preocupe, pois você
estará respondendo como a maioria das pessoas para as quais já
realizamos esse teste antes.
Como
podemos perceber, uma árvore é muito mais do que aquilo que nossos
sentidos podem nos mostrar num primeiro momento. Além do tronco,
galhos e folhas, as raízes
são
fundamentais
para que a própria árvore consiga se manter de pé e saudável.
Porém, como não estamos habituados a vê-las constantemente, nossa
razão acaba por nos trair e, sem nos darmos conta, esquecemos dessa
parte quando somos desafiados, como no exercício anterior.
Visão
sistêmica
é a maneira de conseguirmos integrar todos os elementos da natureza
e relacioná-los ao nosso trabalho agrícola, por exemplo. Uma árvore
pode nos ser muito mais útil do que apenas fornecedora de frutas,
madeiras ou mesmo sombra, embora tudo isso tenha, numa machamba
agroecológica, um valor quase inestimável. Contudo, os benefícios
de uma árvore vão bem mais além. Além do precioso oxigênio,
resultado direto do processo de fotossíntese, as árvores também
ajudam a regular o clima numa região através da evapotranspiração,
processo pelo qual enriquecemos nossa atmosfera com água no estado
gasoso e que, através desse processo físico, conseguimos manter
nossos campos com temperaturas mais amenas. Um campo arborizado é
muito mais confortável do que áreas com insolação direta. E esse
conforto não é só para os agricultores mas também para muitas de
nossas culturas.
Além
disso, as árvores também são responsáveis por mobilizar grandes
quantidades de nutrientes, oriundos das camadas mais profundas do
solo, que de outra maneira não conseguiriam estar disponíveis para
as nossas culturas agrícolas. Dependendo do porte e da espécie de
árvore, suas raízes podem atingir dezenas de metros de profundidade
e também podem se espalhar por uma grande área, muito maior do que
aquela ocupada pela sombra de sua copa. Isso quer dizer que podemos
estar falando num volume
de solo útil muito
maior do que convencionalmente se aceita para o caso das diversas
culturas agrícolas. Mas tenhamos sempre em mente que nosso sistema
tenderá ser o natural,
ou seja, a mobilização de nutrientes nesse caso seguirá no seu
tempo
certo. Normalmente
os resultados positivos da mobilização de nutrientes num manejo em
que se preserve e até plante árvores num campo agrícola serão
sentidos ao longo dos anos, e não em semanas ou meses, como
normalmente acontece com o manejo convencional. Mas por outro lado,
nossos sistemas ganharão muito em termos de resiliência,
ou
seja, serão muito mais fortes e resistentes a quaisquer intempéries
ou imprevistos que a grande maioria dos sistemas convencionais.
Sombra
na machamba?
A
agricultura convencional baseia-se na produção intensa de alimentos
(uniformizados e padronizados), no menor tempo possível e na menor
unidade de área por unidade de produção possível. Ou seja, tudo
tem de ser muito rápido e em quantidade. Nesse tipo de raciocínio,
o bem estar de todo
o sistema,
não é levado em consideração, talvez justamente pelo fato de não
considerarmos nossos campos como seres
vivos
que são.
O
sombreamento parcial de nossos campos ajuda muito no estabelecimento
de um clima muito mais agradável de se viver, trabalhar e no caso
das plantas, de produzir seus frutos. Evidentemente que temos muitas
espécies de plantas que, para produzirem de forma satisfatória,
necessitam de grandes quantidades de energia do sol e, portanto,
gostam
de
muito sol. Outras, por outro lado, preferem climas mais amenos e não
toleram a insolação direta, preferindo ser cultivadas à meia
sombra, como é o caso do morangueiro. Mas uma coisa é certa, a
maioria absoluta dos vegetais que cultivamos para obter nosso
alimento possui uma temperatura de solo acima da qual não conseguem
mais obter água e, consequentemente, seus nutrientes. Essa
temperatura está na casa dos 32 o.C
e representa um fator limitante para a produção agrícola em
regiões de clima quente como o que acontece nas regiões tropicais e
sub-tropicais. Retomaremos esse assunto no futuro.
É
importante, portanto, pensar no resultado da produção agrícola
global
de
nossos campos, ou seja, na soma e variabilidade de todos os produtos
que possam ser colhidos, comidos ou comercializados. A principal
característica de sistemas naturais de cultivo, como o que estamos
descrevendo nesse curso, é a biodiversidade dos campos e isso
implica em conviver com muitas culturas diferentes ao
mesmo tempo.
Por outro lado, existem estratégias de produção que podem ser
adotadas no sentido de aproveitar ao máximo os espaços, a luz do
sol e o clima mais ameno propiciado pelas sombras das árvores.
Vejamos um exemplo bem interessante.
Todo
agricultor com um mínimo de experiência no cultivo de beterrabas
sabe que elas são plantas que gostam de muito sol, embora necessitem
de temperaturas baixas para produzirem satisfatoriamente, razão pela
qual o seu cultivo em países como Moçambique é preferível nos
meses que antecedem e no próprio inverno. Se plantarmos beterrabas à
sombra, ou mesmo à meia-sombra, suas raízes não irão se
desenvolver satisfatoriamente, deixando somente a parte aérea
(folhas) bem grandes. Muitas das culturas que dão
debaixo da terra
como rabanetes, nabos, cenouras, etc., seguem o mesmo raciocínio da
beterraba. Por sua vez, as beterrabas são plantas que se dão muito
bem com outras, razão pela qual podemos consorciá-las com várias
outras hortícolas,
etc. E são muito ricas nutricionalmente, razão pela qual os
nutricionistas em todo o mundo sempre fazem boas referências ao seu
consumo. No entanto, o que pouca gente sabe é que as folhas da
beterraba também são comestíveis, podendo ser consumidas de
diversas maneiras, e que estudos apontaram que seus níveis
nutricionais são ainda maiores que os das próprias raízes. Em
nossas machambas é comum, portanto, o cultivo de beterrabas tanto a
pleno sol quanto a meia-sombra, sempre que isso for conveniente em
termos de aproveitamento dos espaços. E da mesma forma que as
beterrabas, também os rabanetes, nabos e cenouras, por exemplo,
podem ter suas folhas muito melhor aproveitadas, seja no consumo em
forma de guisados ou mesmo em forma de aditivo alimentar
(desidratação seguida de trituração), compondo inclusive uma
alternativa de renda adicional muito interessante aos agricultores.
Construindo
os quebra-ventos
Outro
aspecto muito interessante do manejo agrloforestal é a implantação
dos chamados quebra-ventos
numa machamba ou campos agrícolas em geral. Sabe-se, por exemplo,
que num dia quente e com vento forte, podemos perder por evaporação
até 70% da água que irrigamos os nossos campos. Isso significa que
para cada 100 litros de água irrigada, 70 litros são perdidos para
a atmosfera sem que tenham cumprido qualquer função biológica no
solo ou fisiológica nas plantas. Essa informação, portanto, é
muito útil para o planejamento correto do trabalho com a água nos
campos, como veremos no final desse módulo.
Uma forma
de diminuir os efeitos negativos dos ventos fortes nos campos
agrícolas é introduzir quebra-ventos na forma de cortinas de
espécies arbóreas plantadas normalmente em linhas. Essas cortinas
podem ser para delinear talhões, ou mesmo toda a machamba, e a
escolha correta das espécies de árvores, em função de sua
conformação, será muito importante.
O vento é uma importante
variável envolvida na produtividade das culturas em geral, seja,
como vimos, pelo fato de aumentar as perdas de água por evaporação
e transpiração dos cultivos comerciais (evapotranspiração), seja
pelo fato de disseminar vetores de doenças. No caso do cafeeiro, que
é uma planta de baixa tolerância aos ventos, a produtividade começa
a cair com ventos acima de 2 metros por segundo (m/s) e com ventos
mais fortes, surgem danos mecânicos nas folhas, que são portas de
entrada para fungos e bactérias. O mesmo acontece com as bananeiras.
Dai a utilidade das barreiras de ventos.
Os quebra-ventos devem ser
alinhados perpendicularmente aos ventos dominantes da região e não
podem formar uma barreira muito fechada ou muito densa. Um bom
quebra-vento deve ser “permeável”, ou seja, parte do vento deve
poder passar entre as árvores.
Quebra-vento
permeável.
Quebra-vento sem adequada
“permeabilidade” cria uma zona de redemoinho e turbulência, numa
faixa localizada imediatamente depois dela:
Quebra-vento sem adequada
permeabilidade.
Um quebra-vento ideal é formado por algumas fileiras de árvores. Do lado que recebe o vento dominante, uma primeira linha é plantada com arbustos ou árvores de porte médio. A segunda e terceira linha será ocupada com árvores mais altas. A última linha, do lado da área cultivada, é desejável o plantio de arbustos ou árvores de porte médio para haver interferência nas culturas, principalmente quando estas são de ciclo curto (anual ou bianual) e de porte baixo. As espécies utilizadas devem ser espécies perenifólias (com folhagem persistente o ano todo), eventualmente misturas com umas poucas árvores semidecíduas. Para manter um grau adequado de permeabilidade do quebra-vento, é necessário podar periodicamente as árvores das segundas e terceiras linhas, eliminando os ramos na parte inferior dos troncos. Vejam, a seguir, os perfis transversais de bons quebra-ventos:
Perfil transversal de
quebra-vento com 4 fileiras.
Perfil transversal de quebra-vento com 5 fileiras.
A largura ocupada pelo
quebra-vento deve ser inferior a 15-20 metros. O quebra-vento que
recebe o primeiro impacto do vento dominante (quebra-vento principal)
deve ter uma largura de pelo menos 15 metros e possuir 5 fileiras.
Não há necessidade de exagerar a largura do quebra-vento. Uma boa
barreira de 20 metros de largura pode ser tão eficiente em termos de
proteção contra o vento que uma faixa de floresta de 600 metros de
largura.
Os quebra-ventos secundários,
localizados mais para dentro da área cultivada, podem ser mais
estreitos, por exemplo, com apenas 3 fileiras arborizadas e uma
largura de 6 a 8 metros. A distância (D) entre dois quebra-ventos
deve ser igual, no máximo, a 20 vezes a altura média das árvores
de maior crescimento vertical existente nela.
Quando, além do vento
dominante,
existem também os ventos
secundários,
capazes de afetar o rendimento da agricultura ou da pecuária, convém
estabelecer quebra-ventos adicionais, com uma orientação
apropriada, formando-se, neste caso, uma rede mais ou menos
quadriculada.
As funções de um bom
quebra-vento.
Os
quebra-ventos rápidos
Temos de
levar em consideração que as árvores plantadas para servirem de
quebra-ventos só cumprirão efetivamente esse papel depois de alguns
anos. Por vezes será necessário lançar mão de outras alternativas
de curto prazo, principalmente quando as condições do terreno não
forem assim tão propícias. Nesses casos, o plantio de feijão-boer,
também
chamado de feijão-guandu (Cajanus
cajan),
adensado e em linha, poderá fornecer um quebra-vento muito eficiente
e o seu replantio a cada dois ou três anos, por exemplo, pode
auxiliar o campo até que o quebra-vento definitivo se estabeleça.
Uma forma
interessante de implantar quebra-ventos nas machambas da Agricultura
Natural é quando a configuramos no formato de mandalas.
Nesses casos, o feijão-guandu pode ser plantado ao logo de alguns
dos anéis, dando um espaçamento entre essas linhas de tal modo que
sejam evitados os vórtices de ar no interior da mandala. Esses
quebra-ventos atingem sua maturidade em pouco tempo, normalmente 1
ano, bem menos que no caso de quebra-ventos feitos com árvores. E
além do efeito do quebra-vento, o feijão-guandu também é uma
importante fonte de alimentação humana, dos animais de criação e
uma excelente fonte de material para produção de composto orgânico
para o solo.
Quebra-ventos
criados pelo plantio adensado de feijão-boer (feijão-guandu),
instaladas em uma das machambas do Pólo de Agricultura Natural da
Moamba.
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