sexta-feira, 4 de abril de 2014

AULA 6 - Texto de apoio



2. Biodiversidade
(Capítulo 2 do Módulo II da Apostila do Curso de Agricultura Natural)
Um dos pontos fundamentais para realmente compreender e praticar a Agricultura Natural, sendo ela um método que segue as Leis Naturais, como nos ensina Mokiti Okada, é estarmos atentos para a biodiversidade de nossos campos agrícolas. Observe novamente uma mata ou pequena floresta e perceberá a grande quantidade de espécies vegetais e animais que coexistem naquele local. A natureza é composta, como já dissemos, de redes de interações onde o fluxo de energia entre cada um dos seus componentes é dinâmico. Mas para isso, é nescessária a presença de um grande número de espécies. Vamos ver como a biodiversidade afeta diretamente o que comemos.
Biodiversidade é uma palavra recente. Foi usada pela primeira vez em 1986, em Washington, pelo entomólogo Edward O. Wilson (1929-). O conceito envolve a natureza, a própria vida e a diversidade da vida em vários níveis – do menor e mais básico (como genes e bactérias), passando pelas espécies animais e vegetais, até os níveis mais complexos (ecossistemas). Todos esses níveis se intercruzam, afetando-se mutuamente e evoluindo.
Para se ter uma ideia da importância da biodiversidade para os ecossistemas, pesquisadores da Universidade de Stanford compararam as espécies e as variedades dos ecossistemas aos rebites que mantém unidas as peças de um avião. Se um único rebite for eliminado, por algum tempo nada acontece e o avião continua funcionando. Mas, aos poucos, a estrutura enfraquece e, em certo ponto, bastará tirar outro único rebite que o avião cairá (EHRLICH, 1981).
A biodiversidade pode ser comparada a uma espécie de apólice de seguros, permitindo que plantas e animais se adaptem às mudanças climáticas, ataques de parasitas e doenças ou outros imprevistos. Um sistema biologicamente variado possui anticorpos que lhe permitem reagir contra organismos perigosos e restabelecer o seu equilíbrio. Um sistema baseado em um número limitado de variedades, por outro lado, é muito frágil.
Para termos uma ideia do quanto a biodiversidade é importante nos sistemas agrícolas, vamos citar o que aconteceu na Irlanda em meados do século XIX. Na ocasião ocorreu a Grande Fome, como foi chamada a catástrofe social ocorrida pela destruição das safras de batata daquele país. Em 1845 um fungo atacou a lavoura irlandesa de batata, destruindo por anos as safras inteiras desse tubérculo e causando a morte ou a emigração de um milhão e meio de pessoas para os Estados Unidos. Naquela altura, na Irlanda, cultivava-se uma única variedade da batata, tornando-a mais vulnerável ao ataque de vírus e fungos. Com isso, todo o ecosssitema ficou frágil e vulnerável, e a história registrou uma das maiores crises de alimentos registradas na Europa. Posteriormente, o problema foi contornado com a introdução de diversas outras variedades de batatas cultivadas nos Andes, na América do Sul, sua região de origem. Os povos que existem nessa região, especialmente no Vale dos Incas no Peru, cultivam milhares de variedades de batatas desde épocas antigas e talvez por isso seja tão raro encontrar relatos de perdas de safras de batatas, como conteceu na Irlanda do século XIX, nessa região.
Como nos mostram os registros paleontológicos, na história do nosso planeta tudo tem uma origem e um fim, e muitas espécies se extinguiram em todas as épocas. Mas nunca aconteceu na velocidade assustadora dos últimos anos, mil vezes superior a épocas passadas, segundo alguns estudiosos. Em 100 anos, mais de 250.000 variedades de plantas se extinguiram e, segundo as previsões de Wilson, continuarão a desaparecer num ritmo de três espécies por hora (algo em torno de 27.000 por ano!) (WILSON, 1992). Durante o verão de 2012, depois de um estudo de muitos anos, a prestigiada Universidade de Exeter declarou que a Terra está atravessando a sexta grande extinção em massa (a quinta ocorreu a 65 milhões de anos, onde desapareceram os dinossauros).
Num recente comunicado, a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) alertou que o mundo vive um processo de extinção de um número sem precedentes de alimentos. Em seu primeiro levantamento em mais de dez anos sobre biodiversidade no campo agrícola, a FAO afirmou que os governos devem criar estruturas para preservar essas espécies. Pelo levantamento feito, há 100 anos o número de espécies vegetais usadas na alimentação humana era de 10.000 e hoje esse número é de 170. Das cerca de trinta mil espécies de plantas terrestres comestíveis que ainda se conhecem no mundo, apenas 30 culturas são responsáveis por 95% das necessidades de energia para a produção da alimentação humana – com arroz, trigo, milho, painço e sorgo representando 60% dessas necessidades.

A mecanização não favorece a diversidade
A agricultura industrial, por sua natureza, precisa de uniformidade e alta produtividade (produzir cada vez mais por menor espaço de terra possível), isto é, de monoculturas. A partir dos anos 50, a produção agrícola começou a depender, cada vez mais, de um pequeno número de espécies e variedades, selecionadas para responder às necessidades do mercado global, sem considerar os vínculos com o território, mas capazes de serem produzidas no maior número possível de ambientes e climas, com uma boa resistência a manuseio e transporte, e com um sabor uniforme e padronizado. Por exemplo, das milhares variedades de maçãs selecionadas por agricultores, apenas quatro variedades comerciais representam 90% do mercado global.
Do ponto de vista da Agricultura Natural, a variedade biológica de espécies de vegetais e animais representa um grande potencial para o futuro dos nossos campos agrícolas. Mokiti Okada nos ensina que devemos observar com muita atenção os alimentos que nascem naturalmente em uma determinada região, quando diz que “apesar de existir algumas diferenças, dependendo do clima e das características da região, todos os alimentos são produzidos de maneira adequada às pessoas aí nascidas". E ainda “está de acordo com as Leis da Natureza o homem alimentar-se de produtos da safra e da terra em que nasceu e cresceu”. As variedades definidas como autóctones ou locais são o resultado de uma seleção (natural ou auxiliada pelo homem) em áreas específicas. Todas estas variedades caracterizam-se por uma boa adaptação às condições ambientais da própria região e têm, normalmente, menor necessidade de recursos externos, como água, fertilizantes ou pesticidas. São mais rústicas do que a maioria das variedades “padrão” e mais resistentes ao stress ambiental. A sua capacidade de obter melhores resultados em suas regiões de origem (como desertos, cerrados ou montanhas) representa um importante recurso agrícola e uma ferramenta fundamental para a soberania alimentar. Não é por acaso que estas variedades têm um forte vínculo com a cultura das comunidades locais (hábitos, receitas, conhecimentos, dialetos, etc.).

Algumas definições úteis
Como forma de auxiliar a compreensão do que virá a seguir no nosso curso e também para ajudar a sedimentar as informações até aqui expostas, vamos mostrar rapidamente algumas definições de termos importantes.

Ecossistema
Um ecossistema é um conjunto de organismos vegetais e animais, incluindo o homem, interagindo entre si e com o ambiente que os rodeia. Os ecossistemas incluem, por exemplo, lagoas, rios, florestas, cerrados e savanas. Cada ecossistema procura manter o seu equilíbrio. Se esse equilíbrio for pertubado, o ecossistema tentará a todo custo reustaurá-lo, mesmo que isso traga algum prejuízo para o homem, num determinado momento. Por exemplo, quando abrimos campos para agricultura intensiva, retirando do local a vegetação nativa ai existente, logo percebemos a natureza agindo de forma a tentar reestabelecer o equilíbrio original com o aparecimento quase imediato de “ervas invasoras” (o irônico é que do ponto de vista do ecossistema original, invasoras são as culturas introduzidas pelo homem). Nesse ponto o ser humano terá dois caminhos a seguir: ou trabalha contra ou com a natureza. Mas isso vamos discutir posteriormente.

Semi-natural
Um ambiente semi-natural tem caracterísiticas semelhantes a um ambiente natural, como a composição de espécies e processos biológicos, mas que depende da intervenção humana (como corte ou poda) para que se mantenha neste estado. Por exemplo, as machambas da Agricultura Natural em Moçambique constituem de uma grande variedade de espécies vegetais cultivadas e espontâneas, além de normalmente muitas variedades de pássaros e insetos que co-habitam e cooperam entre si no restabelecimento do equilíbrio original, desta vez com a presença do homem agricultor.

Espécies
Uma espécie é um conjunto de organismos que podem intercruzar e produzir descendentes. Cada espécie é geneticamente diferente das outras e bem reconhecível, graças a características morfológicas específicas (forma e cor das flores, frutos, folhas, no caso de plantas; ovo, penas, chifres, pelo, etc. no caso de animais). Ao longo dos séculos, os indivíduos de uma espécie diferenciaram-se para se adaptarem aos diversos ambientes. Por exemplo, o gado das regiões mais agrestes desenvolveu patas mais curtas e robustas, pelo mais espesso e são relativamente menores para pastar em terrenos mais hostis. As plantas dos climas mais áridos desenvolveream a capacidade de dar frutos com escassez de água e assim por diante.
Além do nome comum, cada planta e cada animal possui um nome científico. O botânico sueco do século XVIII, Carl Linnaeus (1707-1778), propôs o método utilizado ainda hoje para identificar organismos. Para simplificar e evitar confusão, Linnaeus sugeriu que fossem atribuídos dois nomes a cada espécie: dois termos latinos, o primeiro com inicial maiúscula, indicando o gênero; e o segundo, com minúscula, indicando a espécie. Alguns exemplos de espécies: Solanum tuberosm (batata), Solanum lycopersicum (tomate) e Solanum melongena (berinjela), todas do mêsmo gênero; Lactuca sativa (alface); Allium cepa (cebola); Zea mays (milho); Manihot esculenta (mandioca); Capra ircus (cabra); Ovis aries (ovelha).

Variedade cultivada (cultivar)
Uma variedade (ou cultivar) é um conjunto de plantas cultivadas, distinguíveis claramente por suas características morfológicas, fisiológicas, químicas e qualitativas. A variedade é estável, conservando suas características também ao se reproduzir (através de sementes ou vegetativamente, como por estacas ou mudas).
Variedades autóctones ou locais são facilmente identificáveis e, geralmente, têm um nome local. São geralmente o resultado da seleção feita por agricultores ou comunidades e caracterizam-se por uma boa adaptação às condições ambientais de uma região. São, portanto, mais resistentes ao stress, necessitando menos recursos externos, como água, fertilizantes, etc.

Ecótipo (população vegetal)
O ecótipo é uma população pertencente a uma espécie (geralmente reproduzidos por sementes) que se adaptou geneticamente a um território específico, geralmente de extensão limitada.
Esta definição é semelhante à definição de variedade (cultivar) autóctone. A diferença é que o ecótipo não tem uma identidade genética precisa, estável e definida, e não faz parte de uma classificação ou registro oficial. Ainda assim, é muito importante para a proteção da biodiversidade cultivada.

Plantas híbridas
Os agricultores sempre selecionaram plantas (observando atentametne os campos que dão as melhores safras ou as plantas que dão os frutos maiores) ou realizam cruzamentos entre variedades da mesma espécie para obter plantas com características melhores. Plantas híbridas são variedades ou ecótipos que derivam da combinação de material genético de diversas espécies. A hibridação pode acontecer naturalmente ou ser feita pelo homem (o chamdo melhoramento genético).
Por exemplo, as principais variedades de morango que hoje se encontram no mercado vêm de um antepassado nascido em Brest, na França, em 1766, a partir do cruzamento entre o morango americano (Fragaria virginiana) e o morango chileno branco (Fragaria chiloensis), levado para a Europa por um engenheiro da corte de Luís XIV. A partir da década de 50 do século XX, a produção agrícola passou a concentrar-se em um número cada vez menor de espécies e variedades, criadas para responder às exigências do mercado global e distantes, portanto, de suas regiões de origem, capazes de serem produzidas em massa, num número maior de ambientes e climas, podendo ser transportadas facilmente, com sabor padronizado, adequado a todos os tipos de consumidor. São conhecidas como “híbridos comerciais”.
A maioria dos híbridos comerciais, criados para atender às exigências do mercado, são protegidos por patentes. Isto não impede que os agricultores comprem e cultivem as sementes. A patente significa apenas que uma parte do preço pago (royalty) será destinada ao detentor da patente (que pode ser público ou privado). Mas há algo que os agricultores não podem fazer ao cultivar híbridos comerciais: não podem coletar e guardar as sementes de sua colheita para uso numa safra futura. O que acontece com os híbridos comerciais? A primeira geração de sementes compradas (chamadas F1) será melhor que os “pais” da qual deriva por cruzamento, tendo, portanto, as características desejadas em termos de produção e/ou vegetação. Mas se os agricultores guardarem a semente F1 para produzir uma segunda geração (F2), ela será uma mistura de características, quase sempre piores que a anterior. Portanto, os agricultores precisam comprar novas sementes todos os anos.

Híbridos animais
Um híbrido animal é o resultado de um cruzamento entre animais de espécies diferentes, mas com uma afinidade estrutural e genética suficiente entre os cromossomos das duas espécies. Um exemplo de animal híbrido é a mula, resultado do cruzamento de um jumento com uma égua, ou bardoto, resultado do cruzamento de uma jumenta com um cavalo. As crias destes cruzamentos são geralmente estéreis. Quando os híbridos vêm de raças ou populações diferentes da mesma espécie, são chamados interespecíficos ou, mais comumente, mestiços.

Organismos geneticamente modificados e organismos transgênicos
Um organismo geneticamente modificado (OGM) é todo aquele que foi submetido a técnicas laboratoriais que, de alguma forma, modificaram seu genoma, enquanto que um organismo transgênico foi submetido a técnica específica de inserção de um trecho de DNA de outra espécie. Assim, o transgênico é um tipo de OGM, mas nem todo OGM é um transgênico. Devido a relação existente entre esses termos, frequentemente, eles são utilizados de forma equivocada como sinônimos.
Para ficar um pouco mais claro, os organismos geneticamente modificados são todos aqueles oriundos, por exemplo, dos cruzamentos entre plantas diferentes com o objetivo de se produzirem plantas melhoradas, isto é, com maior poder de produção agrícola. Já no caso dos organismos transgênicos os cientistas conseguiram modificar o código genético de determinadas espécies de plantas e animais introduzindo na cadeia de DNA os genes de espécies completamente diferentes, inclusive de reinos diferentes. O milho Bt, que já mencionamos no módulo I, recebeu na sua cadeia de DNA parte da cadeia genética da bactéria Bacillus thuringiensis, que nas condições normais produz um toxina nociva a muitos insetos. A intenção era fazer com que o próprio milho Bt agisse como uma espécie de inseticida.

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