2.
Biodiversidade
(Capítulo 2 do Módulo II da Apostila do Curso de Agricultura Natural)
Um
dos pontos fundamentais para realmente compreender e praticar a
Agricultura Natural, sendo ela um método que segue
as Leis Naturais, como
nos ensina Mokiti Okada, é estarmos atentos para a biodiversidade
de
nossos campos agrícolas. Observe novamente uma mata ou pequena
floresta e perceberá a grande quantidade de espécies vegetais e
animais que coexistem naquele local. A natureza é composta, como já
dissemos, de redes de interações onde o fluxo de energia entre
cada um dos seus componentes é dinâmico. Mas para isso, é
nescessária a presença de um grande número de espécies. Vamos ver
como a biodiversidade afeta diretamente o que comemos.
Biodiversidade
é uma palavra recente. Foi usada pela primeira vez em 1986, em
Washington, pelo entomólogo Edward O. Wilson (1929-). O conceito
envolve a natureza, a própria vida e a diversidade da vida em vários
níveis – do menor e mais básico (como genes e bactérias),
passando pelas espécies animais e vegetais, até os níveis mais
complexos (ecossistemas). Todos esses níveis se intercruzam,
afetando-se mutuamente e evoluindo.
Para
se ter uma ideia da importância da biodiversidade para os
ecossistemas, pesquisadores da Universidade de Stanford compararam as
espécies e as variedades dos ecossistemas aos rebites que mantém
unidas as peças de um avião. Se um único rebite for eliminado, por algum
tempo nada acontece e o avião continua funcionando. Mas, aos poucos,
a estrutura enfraquece e, em certo ponto, bastará tirar outro único
rebite que o avião cairá (EHRLICH,
1981).
A
biodiversidade pode ser comparada a uma espécie de apólice de
seguros, permitindo que plantas e animais se adaptem às mudanças
climáticas, ataques de parasitas e doenças ou outros imprevistos.
Um sistema biologicamente variado possui anticorpos
que lhe permitem reagir contra organismos perigosos e restabelecer o
seu equilíbrio. Um sistema baseado em um número limitado de
variedades, por outro lado, é muito frágil.
Para
termos uma ideia do quanto a biodiversidade é importante nos
sistemas agrícolas, vamos citar o que aconteceu na Irlanda em meados
do século XIX. Na ocasião ocorreu a Grande Fome, como foi chamada a
catástrofe social ocorrida pela destruição das safras de batata
daquele país. Em 1845 um fungo atacou a lavoura irlandesa de
batata, destruindo por anos as safras inteiras desse tubérculo e
causando a morte ou a emigração de um milhão e meio de pessoas
para os Estados Unidos. Naquela altura, na Irlanda, cultivava-se uma
única variedade da batata, tornando-a mais vulnerável ao ataque de
vírus e fungos. Com isso, todo o ecosssitema ficou frágil e
vulnerável, e a história registrou uma das maiores crises de
alimentos registradas na Europa. Posteriormente, o problema foi
contornado com a introdução de diversas outras variedades de
batatas cultivadas nos Andes, na América do Sul, sua região de
origem. Os povos que existem nessa região, especialmente no Vale dos
Incas no Peru, cultivam milhares
de variedades de batatas desde épocas antigas e talvez por isso seja
tão raro encontrar relatos de perdas de safras de batatas, como
conteceu na Irlanda do século XIX, nessa região.
Como
nos mostram os registros paleontológicos, na história do nosso
planeta tudo tem uma origem e um fim, e muitas espécies se
extinguiram em todas as épocas. Mas nunca aconteceu na velocidade
assustadora dos últimos anos, mil vezes superior a épocas passadas,
segundo alguns estudiosos. Em 100 anos, mais de 250.000 variedades de
plantas se extinguiram e, segundo as previsões de Wilson,
continuarão a desaparecer num ritmo de três espécies por hora
(algo em torno de 27.000 por ano!) (WILSON, 1992). Durante o verão
de 2012, depois de um estudo de muitos anos, a prestigiada
Universidade de Exeter declarou que a Terra está atravessando a
sexta grande extinção em massa (a quinta ocorreu a 65 milhões de
anos, onde desapareceram os dinossauros).
Num
recente comunicado, a FAO (Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação) alertou que o mundo vive um processo de
extinção de um número sem precedentes de alimentos. Em seu
primeiro levantamento em mais de dez anos sobre biodiversidade no
campo agrícola, a FAO afirmou que os governos devem criar estruturas
para preservar essas espécies. Pelo levantamento feito, há 100 anos
o número de espécies vegetais usadas na alimentação humana era de
10.000 e hoje esse número é de 170. Das cerca de trinta mil
espécies de plantas terrestres comestíveis que ainda se conhecem no
mundo, apenas 30 culturas são responsáveis por 95% das necessidades
de energia para a produção da alimentação humana – com arroz,
trigo, milho, painço e sorgo representando 60% dessas necessidades.
A
mecanização não favorece a diversidade
A
agricultura industrial, por sua natureza, precisa de uniformidade e
alta produtividade (produzir cada vez mais por menor espaço de terra
possível), isto é, de monoculturas. A partir dos anos 50, a
produção agrícola começou a depender, cada vez mais, de um
pequeno número de espécies e variedades, selecionadas para
responder às necessidades do mercado global, sem considerar os
vínculos com o território, mas capazes de serem produzidas no maior
número possível de ambientes e climas, com uma boa resistência a
manuseio e transporte, e com um sabor uniforme
e padronizado.
Por exemplo, das milhares variedades de maçãs selecionadas por
agricultores, apenas quatro variedades comerciais representam 90% do
mercado global.
Do
ponto de vista da Agricultura Natural, a variedade biológica de
espécies de vegetais e animais representa um grande potencial para o
futuro dos nossos campos agrícolas. Mokiti Okada nos ensina que
devemos observar com muita atenção os alimentos que nascem
naturalmente em uma determinada região, quando diz que “apesar
de existir algumas diferenças, dependendo do clima e das
características da região, todos os alimentos são produzidos de
maneira adequada às pessoas aí nascidas". E
ainda
“está de acordo com as Leis da Natureza o homem alimentar-se de
produtos da safra e da terra em que nasceu e cresceu”. As
variedades definidas como autóctones
ou
locais
são o resultado de uma seleção (natural ou auxiliada pelo homem)
em áreas específicas. Todas estas variedades caracterizam-se por
uma boa adaptação às condições ambientais da própria região e
têm, normalmente, menor necessidade de recursos externos, como água,
fertilizantes ou pesticidas. São mais rústicas do que a maioria das
variedades “padrão” e mais resistentes ao stress
ambiental. A sua capacidade de obter melhores resultados em suas
regiões de origem (como desertos, cerrados ou montanhas) representa
um importante recurso agrícola e uma ferramenta fundamental para a
soberania alimentar. Não é por acaso que estas variedades têm um
forte vínculo com a cultura das comunidades locais (hábitos,
receitas, conhecimentos, dialetos, etc.).
Algumas
definições úteis
Como
forma de auxiliar a compreensão do que virá a seguir no nosso curso
e também para ajudar a sedimentar as informações até aqui
expostas, vamos mostrar rapidamente algumas definições de termos
importantes.
Ecossistema
Um
ecossistema
é um conjunto de organismos vegetais e animais, incluindo o homem,
interagindo entre si e com o ambiente que os rodeia. Os ecossistemas
incluem, por exemplo, lagoas, rios, florestas, cerrados e savanas.
Cada ecossistema procura manter o seu equilíbrio. Se esse equilíbrio
for pertubado, o ecossistema tentará a todo custo reustaurá-lo,
mesmo que isso traga algum prejuízo para o homem, num determinado
momento. Por exemplo, quando abrimos campos para agricultura
intensiva, retirando do local a vegetação nativa ai existente, logo
percebemos a natureza agindo de forma a tentar reestabelecer o
equilíbrio original com o aparecimento quase imediato de “ervas
invasoras” (o irônico é que do ponto de vista do ecossistema
original, invasoras
são
as culturas introduzidas pelo homem). Nesse ponto o ser humano terá
dois caminhos a seguir: ou trabalha contra
ou com
a
natureza. Mas isso vamos discutir posteriormente.
Semi-natural
Um
ambiente semi-natural tem caracterísiticas semelhantes a um ambiente
natural, como a composição de espécies e processos biológicos,
mas que depende da intervenção humana (como corte ou poda) para que
se mantenha neste estado. Por exemplo, as machambas
da
Agricultura Natural em Moçambique constituem de uma grande variedade
de espécies vegetais cultivadas e espontâneas, além de normalmente
muitas variedades de pássaros e insetos que co-habitam e cooperam
entre si no restabelecimento do equilíbrio original, desta vez com a
presença do homem agricultor.
Espécies
Uma
espécie é um conjunto de organismos que podem intercruzar e
produzir descendentes. Cada espécie é geneticamente diferente das
outras e bem reconhecível, graças a características morfológicas
específicas (forma e cor das flores, frutos, folhas, no caso de
plantas; ovo, penas, chifres, pelo, etc. no caso de animais). Ao
longo dos séculos, os indivíduos de uma espécie diferenciaram-se
para se adaptarem aos diversos ambientes. Por exemplo, o gado das
regiões mais agrestes desenvolveu patas mais curtas e robustas, pelo
mais espesso e são relativamente menores para pastar em terrenos
mais hostis. As plantas dos climas mais áridos desenvolveream a
capacidade de dar frutos com escassez de água e assim por diante.
Além
do nome comum, cada planta e cada animal possui um nome científico.
O botânico sueco do século XVIII, Carl Linnaeus (1707-1778), propôs
o método utilizado ainda hoje para identificar organismos. Para
simplificar e evitar confusão, Linnaeus sugeriu que fossem
atribuídos dois nomes a cada espécie: dois termos latinos, o
primeiro com inicial maiúscula, indicando o gênero;
e o segundo, com minúscula, indicando a espécie. Alguns exemplos de
espécies: Solanum
tuberosm (batata),
Solanum
lycopersicum (tomate)
e Solanum
melongena (berinjela),
todas do mêsmo gênero; Lactuca
sativa (alface);
Allium
cepa
(cebola); Zea
mays (milho);
Manihot
esculenta
(mandioca); Capra
ircus (cabra);
Ovis
aries (ovelha).
Variedade
cultivada (cultivar)
Uma
variedade (ou cultivar) é um conjunto de plantas cultivadas,
distinguíveis claramente por suas características morfológicas,
fisiológicas, químicas e qualitativas. A variedade é estável,
conservando suas características também ao se reproduzir (através
de sementes ou vegetativamente, como por estacas ou mudas).
Variedades
autóctones ou locais são facilmente identificáveis e, geralmente,
têm um nome local. São geralmente o resultado da seleção feita
por agricultores ou comunidades e caracterizam-se por uma boa
adaptação às condições ambientais de uma região. São,
portanto, mais resistentes ao stress,
necessitando menos recursos externos, como água, fertilizantes, etc.
Ecótipo
(população vegetal)
O
ecótipo é uma população pertencente a uma espécie (geralmente
reproduzidos por sementes) que se adaptou geneticamente a um
território específico, geralmente de extensão limitada.
Esta
definição é semelhante à definição de variedade (cultivar)
autóctone. A diferença é que o ecótipo não tem uma identidade
genética precisa, estável e definida, e não faz parte de uma
classificação ou registro oficial. Ainda assim, é muito importante
para a proteção da biodiversidade cultivada.
Plantas
híbridas
Os
agricultores sempre selecionaram plantas (observando atentametne os
campos que dão as melhores safras ou as plantas que dão os frutos
maiores) ou realizam cruzamentos
entre variedades da mesma espécie para obter plantas com
características melhores. Plantas híbridas são variedades ou
ecótipos que derivam da combinação de material genético de
diversas espécies. A hibridação pode acontecer naturalmente ou ser
feita pelo homem (o chamdo melhoramento genético).
Por
exemplo, as principais variedades de morango
que hoje se encontram no mercado vêm de um antepassado nascido em
Brest, na França, em 1766, a partir do cruzamento entre o morango
americano (Fragaria
virginiana)
e o morango chileno branco (Fragaria
chiloensis),
levado para a Europa por um engenheiro da corte de Luís XIV. A
partir da década de 50 do século XX, a produção agrícola passou
a concentrar-se em um número cada vez menor de espécies e
variedades, criadas para responder às exigências do mercado global
e distantes, portanto, de suas regiões de origem, capazes de serem
produzidas em massa, num número maior de ambientes e climas, podendo
ser transportadas facilmente, com sabor padronizado, adequado a todos
os tipos de consumidor. São conhecidas como “híbridos
comerciais”.
A
maioria dos híbridos comerciais, criados para atender às exigências
do mercado, são protegidos por patentes.
Isto não impede que os agricultores comprem e cultivem as sementes.
A patente significa apenas que uma parte do preço pago (royalty)
será destinada ao detentor da patente (que pode ser público ou
privado). Mas há algo que os agricultores não podem fazer ao
cultivar híbridos comerciais: não podem coletar e guardar as
sementes de sua colheita para uso numa safra futura. O que acontece
com os híbridos comerciais? A primeira geração de sementes
compradas (chamadas F1) será melhor que os “pais” da qual deriva
por cruzamento, tendo, portanto, as características desejadas em
termos de produção e/ou vegetação. Mas se os agricultores
guardarem a semente F1 para produzir uma segunda geração (F2), ela
será uma mistura de características, quase sempre piores que a
anterior. Portanto, os agricultores precisam comprar novas sementes
todos os anos.
Híbridos
animais
Um
híbrido animal é o resultado de um cruzamento entre animais de
espécies diferentes, mas com uma afinidade
estrutural e genética suficiente entre os cromossomos das duas
espécies. Um exemplo de animal híbrido é a mula, resultado do
cruzamento de um jumento com uma égua, ou bardoto, resultado do
cruzamento de uma jumenta com um cavalo. As crias destes cruzamentos
são geralmente estéreis. Quando os híbridos vêm de raças ou
populações diferentes da mesma espécie, são chamados
interespecíficos ou, mais comumente, mestiços.
Organismos
geneticamente modificados e organismos transgênicos
Um
organismo geneticamente modificado (OGM) é todo aquele que foi
submetido a técnicas laboratoriais que, de alguma forma, modificaram
seu genoma, enquanto que um organismo transgênico foi submetido a
técnica específica de inserção de um trecho de DNA de outra
espécie. Assim, o transgênico é um tipo de OGM, mas nem todo OGM é
um transgênico. Devido a relação existente entre esses termos,
frequentemente, eles são utilizados de forma equivocada como
sinônimos.
Para
ficar um pouco mais claro, os organismos geneticamente modificados
são todos aqueles oriundos, por exemplo, dos cruzamentos entre
plantas diferentes com o objetivo de se produzirem plantas
melhoradas,
isto é, com maior poder de produção agrícola. Já no caso dos
organismos transgênicos os cientistas conseguiram modificar
o código genético
de determinadas espécies de plantas e animais introduzindo na cadeia
de DNA os genes de espécies completamente diferentes, inclusive de
reinos diferentes. O milho Bt, que já mencionamos no módulo I,
recebeu na sua cadeia de DNA parte da cadeia genética da bactéria
Bacillus
thuringiensis,
que nas condições normais produz um toxina nociva a muitos insetos.
A intenção era fazer com que o próprio milho Bt agisse como uma
espécie de inseticida.
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