2.
Higienização
(Capítulo 2 do Módulo 3 da apostila do Curso de Agricultura Natural)
Introdução
Ao longo dos anos, percebemos
muitas vezes que algumas pessoas, ao se referirem aos produtos
agrícolas produzidos pela Agricultura Natural, que via de regra não
recomenda nenhum tipo de defensivo químico ou mesmo resíduos de
origem animal que não tenham sido previamente tratados, acabam por
menosprezar os cuidados necessários com a higiene de tais produtos.
De fato, se forem produzidos conforme os fundamentos e premissas
básicas, os produtos da Agricultura Natural terão uma grande chance
de não conterem contaminantes, sejam eles de origem química ou
microbiológica. Mas por que ainda terão a possibilidade de estarem
contaminados?
A resposta a essa pergunta
pode ser muito complexa. Embora não entrem no manejo ecológico
proposto do solo, muitos químicos agrícolas poderão ser
encontrados no solo ou mesmo na água que será usada na irrigação
na forma de resíduos. Além disso, os resíduos de combustíveis,
oriundos de derrames acidentais no solo ou na água, também poderão
estar presentes. A contaminação microbiológica, por sua vez,
poderá ocorrer ao usarmos água contaminada com resíduos de fezes
humanas e animais ou ainda na hora da manipulação do alimento, a
começar no momento da colheita.
Existe um sistema que tenta
estabelecer pontos críticos de controle que visam minimizar os
riscos de contaminação dos alimentos que irão ser consumidos e
principalmente oferecidos no mercado. O termo técnico desse sistema
é HACCP – Sistema de Análise de Perigos e Pontos Críticos de
Controle. Evidentemente que, no âmbito desse manual, estamos focados
no trabalho do agricultor camponês dentro da realidade rural do
interior africano. Isso quer dizer que estaremos tentando seguir as
recomendações internacionais de segurança dos alimentos dentro das
possibilidades oferecidas pelo nosso ambiente de trabalho, sem perder
o foco da qualidade final dos produtos processados pelos camponeses.
Fazendo referencia ao Codex
Alimentarius,
que é uma coletânea de padrões reconhecidos internacionalmente,
códigos de conduta, orientações e outras recomendações relativas
a alimentos, produção de alimentos e segurança alimentar,
publicado pela FAO/ONU, vamos citar um trecho da sua introdução:
“É direito das pessoas
terem a expectativa de que os alimentos que consomem sejam seguros e
adequados para consumo. As doenças e os danos provocados por
alimentos são, na melhor das hipóteses, desagradáveis, e, na pior
da hipóteses, fatais. Há também outras conseqüências. Os surtos
de doenças transmitidas por alimentos podem prejudicar o comércio
e o turismo, gerando perdas econômicas, desemprego e conflitos.
Alimentos deteriorados causam desperdício e aumento de custos,
afetando de forma adversa o comércio e a confiança do consumidor.
O comércio internacional de
alimentos e as viagens internacionais estão aumentando. O resultado
são importantes benefícios sócio-econômicos, mas também a
disseminação de doenças ao redor do mundo. Nas últimas décadas,
os hábitos alimentares têm passado por mudanças em muitos países,
acarretando o desenvolvimento de novas técnicas de produção,
preparação e distribuição de alimentos. Portanto, um controle
eficaz de higiene tornou-se imprescindível para se evitar
conseqüências prejudiciais decorrentes de doenças e danos
provocados pelos alimentos à saúde humana e à economia. Todos –
agricultores e cultivadores, fabricantes e processadores,
manipuladores de alimentos e consumidores – têm a
responsabilidade de garantir que o alimento seja seguro e adequado
para consumo.
Estes Princípios Gerais
estabelecem uma base sólida para garantir a higiene dos alimentos e,
quando apropriado, devem ser usados em conjunto com os códigos de
práticas de higiene específicos e com as diretrizes sobre
critérios microbiológicos. O documento acompanha a cadeia de
alimentos desde a produção primária até o consumidor final,
destacando os controles de higiene funadamentais em cada etapa.
Recomenda, sempre que possível, a adoção de um enfoque baseado no
Sistema HACCP, para aumentar segurança alimentar, conforme descrito
no Sistema de
Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (HACCP)
e Diretrizes
para sua Aplicação.”
Higienização dos produtos
agrícolas
Após a colheita e a seleção
dos produtos, retirando-se aqueles que eventualmente não estejam em
condições de serem comercializados ou mesmo consumidos, a etapa
seguinte é a higienização adequada dos produtos. Por higienização
entendemos a limpeza dos alimentos, retirando resíduos de terra,
folhas secas, restos de composto, etc. Na realidade, na prática da
Agricultura Natural não temos a maioria dos problemas que os
produtos convencionais, cultivados com agrotóxicos e diretamente com
estrume animal, têm. Essencialmente nossos produtos tenderão a
ser isentos de
todas essas substâncias e microrganismos nocivos, mas isso não quer
dizer que não temos de tomar cuidados para não contaminar nossos
produtos justamente após serem colhidos. Isso poderá acontecer, por
exemplo, se a sua manipulação for feita por pessoas cuja higiene
pessoal não for adequada. Não lavar as mãos após usar a casa de
banho e em seguida manipular folhas e legumes, por exemplo, pode
deitar por terra todo o trabalho da produção até então, pois
poderão acontecer contaminações microbiológicas principalmente
por bactérias típicas do trato gastrointestinal humano como a
Escherichia
coli, causadora
de graves toxinfecções alimentares. Outra forma de contaminarmos
nossos produtos é usando utensílios sujos ou inadequados.
Higiene pessoal
Antes de começar o trabalho
de higienização dos alimentos colhidos na machamba é muito
importante assegurar a própria higiene pessoal. Banhos diários,
unhas bem aparadas, cabelo preso preferencialmente com um lenço ou
touca descartável, roupas limpas, etc., ajudarão a garantir que os
alimentos possam ser manipulados sem riscos apreciáveis de serem
contaminados.
A higiene pessoal e a
organização do espaço de trabalho são importantes para garantir a
qualidade dos produtos processados. Machamba-modelo da Agricultura
Natural de Marracuene.
O uso de máscaras e mesmo
luvas descartáveis também é altamente recomendável, pois irão
ajudar a garantir ainda mais a sanidade e qualidade dos produtos
agrícolas. Mas independentemente de se usarem máscaras e luvas, é
importantíssimo lavar bem as mãos antes de qualquer atividade de
contato direto com os alimentos.
Ambiente de trabalho
Preferencialmente o ambiente
em que o trabalho de higienização e manipulação dos alimentos for
feito deverá ser protegido contra o vento, sol, chuva, sujidades,
etc. O ideal é dispormos de uma sala azulejada, ou seja, com as
paredes revestidas por cerâmicas impermeáveis e piso lavável de
tijoleiras. Entretanto, sabemos da realidade da maior parte do
interior em África e da incapacidade, na maior parte das vezes, de
garantir esse tipo de instalação. Sendo assim, o ideal é que o
local seja arejado, livre da circulação de animais domésticos,
curiosos e que seja tudo muito bem organizado. Na medida do possível,
o ambiente escolhido para essas atividades deve ser de uso exclusivo
das pessoas que irão desenvolver a atividade e reservado apenas para
essa etapa do trabalho com os produtos agrícolas. Por exemplo, não
convém misturar nesse mesmo ambiente o depósito de combustíveis,
ferramentas de campo ou outros materiais do gênero.
Qualidade da água
A água que será usada para
lavar nossos produtos deve ser isenta de quaisquer sujidades
e contaminações químicas e microbiológicas. O ideal é que se
usem águas provenientes de furos e que sejam devidamente armazenadas
em tanques fechados para evitar qualquer tipo de contaminação.
Águas provenientes de poços também podem ser usadas mas cuidados
adicionais com o próprio poço serão necessárias para se garantir
que nenhum material estranho venha a cair nele, o que fatalmente
reduzirá a qualidade de suas águas. Nesses casos também, o cuidado
com os materiais como baldes, cordas, etc. que forem ser usados para
retirar a água são de extrema importância.
No caso de se ter como única
opção o uso de águas diretamente de rios, deve-se atentar para
possíveis contaminações de suas águas por esgotos sanitários,
resíduos industriais, agrotóxicos, etc. Na nossa escala de trabalho
não recomendamos o uso dessa fonte de água diretamente para a
higienização e manipulação de nossos alimentos colhidos.
NOTA: A opção, que
infelizmente nem sempre será barata e disponível, é fazer essa
água passar por um processo de tratamento adequado. Portanto, tenha
em mente no planejamento global do seu trabalho com a terra que num
determinado momento será necessário ter uma fonte de água limpa e
potável para um melhor aproveitamento dos resultados do campo. Como
investimento recomendado numa determinada propriedade, indicamos a
abertura de poços ou mesmo furos e isso, dependendo das condições,
poderá ser feito por sistemas de cotas e parcerias com outros
agricultores da sua região.
Ainda no caso das água de
poços e furos, ou mesmo daquela servida pelos sistemas de
distribuição de água das companhias de saneamento, que possuam
historial de problemas derivados de contaminações microbiológicas,
pode ser interessante fazer o uso da desinfecção caseira. Para
isso, prepare um reservatório de plástico, como tanques de água, e
limpe-os bem. Em seguida, encha-os com a água que ira ser usada e
adicione 1 colher de javel (água sanitária) para cada 200 litros
de água. Deixe essa água em repouso por uma noite para que todos os
microrganismos nocivos sejam mortos e os resíduos de javel sejam
evaporados. Retire essa água do tanque com auxílio de torneiras e
nunca introduza baldes ou outros recipientes no seu interior.
Essa é uma forma de tentar
minimizar problemas decorrentes da contaminação de microrganismos
patogênicos veiculados pela água provenientes, principalmente, de
resíduos fecais que possam entrar em contato com as fontes de água.
Contudo, se conseguir garantir a correta limpeza e isolamento da
fonte de água, esses cuidados de desinfecção poderão ser
minimizados e dai a importância de investir algum tempo e dinheiro
na garantia da qualidade da água disponível, quando isso for o
caso.
Higienização dos produtos
agrícolas
Agora que já garantimos a
higiene pessoal, a limpeza e organização do espaço de trabalho bem
como os utensílios que serão usados, e finalmente garantimos a
qualidade da água para essa etapa do trabalho, passaremos para a
higienização dos produtos, propriamente dito.
As folhas
recém colhidas podem ser imersas em água limpa, para retirar os
resíduos de terra e outras sujidades.
Uma forma de garantir a eficiência dessa operação é dispor de
dois ou três recipientes com água que deverá ir sendo trocada de
tempos em tempos. Imergimos as folhas no primeiro tanque e depois
vamos transferindo para os seguintes. Desse forma, ao final do último
recipiente, já temos produtos bem limpos e melhor apresentados.
Após essa etapa de limpeza
das folhas, deve-se fazer uma inspeção minunciosa para garantir que
não restam resíduos e principalmente insetos. Vamos lembrar que
estamos a praticar a Agricultura Natural, que segue as leis da
Natureza. Isso quer dizer que convivemos com o mundo natural e seus
habitantes! Muitos desses bichinhos que vêm junto com nossas
colheitas estão nos ajudando a controlar outros que poderiam nos
trazer enormes prejuízos ao comerem grande parte de nossos produtos
ainda no campo. Portanto, não é recomendado que pensemos neles como
um incômodo, pois na verdade, a grande maioria deles são nossos
colaboradores. Porém, é claro que sua presença nos produtos a
serem consumidos ou comercializados não é adequado e por isso
devemos garantir que não estarão a andar nos nossos pratos ou nas
nossas bancas de venda.
Já com os tubérculos
e raízes temos uma dificuldade a mais que é a grande quantidade de
terra que normalmente acompanha esses produtos ao serem colhidos. O
que normalmente fazemos é deixar um recipiente grande com água e
deixar as raízes por uns 20 ou 30 minutos imersas nela para
amolecerem a terra que vem com elas. Em seguida, com a ajuda de uma
esponja ou pedaço de pano, retiramos a lama que se forma e só
depois transferimos os produtos para outro recipiente com água mais
limpa. Vamos repetindo essa operação até que toda a nossa colheita
esteja devidamente limpa e deixamos as raízes e tubérculos secando
à sombra.
Também nessa etapa vamos
selecionando os nossos tubérculos, podendo separá-los por tamanho
sempre que isso for conveniente em termos de vendas. Recomenda-se
que, na medida do possível, esses produtos sejam vendidos inteiros,
com suas folhas e mesmo as pontas de suas raízes sem serem
retiradas. Muitos tubérculos possuem nutrientes nessas partes e como
não fazemos uso de agrotóxicos, o consumo de suas folhas não só é
possível como também altamente recomendado. Por exemplo, as folhas
das cenouras e beterrabas são excelentes em refogados e sopas e a
apresentação desses produtos com suas folhas originais tende a
valorizá-los ainda mais.
No caso da mandioca,
o ideal é que sejam consumidas o quanto antes após sua colheita. Se
passar muito tempo, pode acontecer dela começar a escurecer e isso
fará com que perca alguns de seus nutrientes e qualidade de
cozimento. Portanto, é bom programar bem a colheita em função da
previsão de venda ou consumo para que sempre possamos oferecer
produtos de melhor qualidade.
As frutas
também tem seus próprios meios de serem limpas e preservadas. O
ideal é que ao serem colhidas evitem-se romper as cascas. Por
exemplo, no caso das tangerinas, o ideal é que o fruto ainda
mantenha o seu talo evitando expor o interior da fruta. Dessa forma,
ao serem lavadas não corremos o risco de deixar a água entrar em
contato com a polpa o que fatalmente irá estragá-la. Papaias,
mangas, massalas, etc. seguem o mesmo raciocínio. No geral, os
próprios agricultores podem ir fazendo suas observações e
descobrindo sempre melhores condições de preservar as diversas
frutas, principalmente as nativas de cada região, compartilhando
seus conhecimentos e aprendizados com os agricultores de sua
comunidade.
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