terça-feira, 10 de junho de 2014

AULA 16: Texto de apoio


2. Higienização
(Capítulo 2 do Módulo 3 da apostila do Curso de Agricultura Natural)

Introdução
Ao longo dos anos, percebemos muitas vezes que algumas pessoas, ao se referirem aos produtos agrícolas produzidos pela Agricultura Natural, que via de regra não recomenda nenhum tipo de defensivo químico ou mesmo resíduos de origem animal que não tenham sido previamente tratados, acabam por menosprezar os cuidados necessários com a higiene de tais produtos. De fato, se forem produzidos conforme os fundamentos e premissas básicas, os produtos da Agricultura Natural terão uma grande chance de não conterem contaminantes, sejam eles de origem química ou microbiológica. Mas por que ainda terão a possibilidade de estarem contaminados?
A resposta a essa pergunta pode ser muito complexa. Embora não entrem no manejo ecológico proposto do solo, muitos químicos agrícolas poderão ser encontrados no solo ou mesmo na água que será usada na irrigação na forma de resíduos. Além disso, os resíduos de combustíveis, oriundos de derrames acidentais no solo ou na água, também poderão estar presentes. A contaminação microbiológica, por sua vez, poderá ocorrer ao usarmos água contaminada com resíduos de fezes humanas e animais ou ainda na hora da manipulação do alimento, a começar no momento da colheita.
Existe um sistema que tenta estabelecer pontos críticos de controle que visam minimizar os riscos de contaminação dos alimentos que irão ser consumidos e principalmente oferecidos no mercado. O termo técnico desse sistema é HACCP – Sistema de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle. Evidentemente que, no âmbito desse manual, estamos focados no trabalho do agricultor camponês dentro da realidade rural do interior africano. Isso quer dizer que estaremos tentando seguir as recomendações internacionais de segurança dos alimentos dentro das possibilidades oferecidas pelo nosso ambiente de trabalho, sem perder o foco da qualidade final dos produtos processados pelos camponeses.
Fazendo referencia ao Codex Alimentarius, que é uma coletânea de padrões reconhecidos internacionalmente, códigos de conduta, orientações e outras recomendações relativas a alimentos, produção de alimentos e segurança alimentar, publicado pela FAO/ONU, vamos citar um trecho da sua introdução:
“É direito das pessoas terem a expectativa de que os alimentos que consomem sejam seguros e adequados para consumo. As doenças e os danos provocados por alimentos são, na melhor das hipóteses, desagradáveis, e, na pior da hipóteses, fatais. Há também outras conseqüências. Os surtos de doenças transmitidas por alimentos podem prejudicar o comércio e o turismo, gerando perdas econômicas, desemprego e conflitos. Alimentos deteriorados causam desperdício e aumento de custos, afetando de forma adversa o comércio e a confiança do consumidor.
O comércio internacional de alimentos e as viagens internacionais estão aumentando. O resultado são importantes benefícios sócio-econômicos, mas também a disseminação de doenças ao redor do mundo. Nas últimas décadas, os hábitos alimentares têm passado por mudanças em muitos países, acarretando o desenvolvimento de novas técnicas de produção, preparação e distribuição de alimentos. Portanto, um controle eficaz de higiene tornou-se imprescindível para se evitar conseqüências prejudiciais decorrentes de doenças e danos provocados pelos alimentos à saúde humana e à economia. Todos – agricultores e cultivadores, fabricantes e processadores, manipuladores de alimentos e consumidores – têm a responsabilidade de garantir que o alimento seja seguro e adequado para consumo.
Estes Princípios Gerais estabelecem uma base sólida para garantir a higiene dos alimentos e, quando apropriado, devem ser usados em conjunto com os códigos de práticas de higiene específicos e com as diretrizes sobre critérios microbiológicos. O documento acompanha a cadeia de alimentos desde a produção primária até o consumidor final, destacando os controles de higiene funadamentais em cada etapa. Recomenda, sempre que possível, a adoção de um enfoque baseado no Sistema HACCP, para aumentar segurança alimentar, conforme descrito no Sistema de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (HACCP) e Diretrizes para sua Aplicação.”

Higienização dos produtos agrícolas
Após a colheita e a seleção dos produtos, retirando-se aqueles que eventualmente não estejam em condições de serem comercializados ou mesmo consumidos, a etapa seguinte é a higienização adequada dos produtos. Por higienização entendemos a limpeza dos alimentos, retirando resíduos de terra, folhas secas, restos de composto, etc. Na realidade, na prática da Agricultura Natural não temos a maioria dos problemas que os produtos convencionais, cultivados com agrotóxicos e diretamente com estrume animal, têm. Essencialmente nossos produtos tenderão a ser isentos de todas essas substâncias e microrganismos nocivos, mas isso não quer dizer que não temos de tomar cuidados para não contaminar nossos produtos justamente após serem colhidos. Isso poderá acontecer, por exemplo, se a sua manipulação for feita por pessoas cuja higiene pessoal não for adequada. Não lavar as mãos após usar a casa de banho e em seguida manipular folhas e legumes, por exemplo, pode deitar por terra todo o trabalho da produção até então, pois poderão acontecer contaminações microbiológicas principalmente por bactérias típicas do trato gastrointestinal humano como a Escherichia coli, causadora de graves toxinfecções alimentares. Outra forma de contaminarmos nossos produtos é usando utensílios sujos ou inadequados.
 
Higiene pessoal
Antes de começar o trabalho de higienização dos alimentos colhidos na machamba é muito importante assegurar a própria higiene pessoal. Banhos diários, unhas bem aparadas, cabelo preso preferencialmente com um lenço ou touca descartável, roupas limpas, etc., ajudarão a garantir que os alimentos possam ser manipulados sem riscos apreciáveis de serem contaminados. 
 





A higiene pessoal e a organização do espaço de trabalho são importantes para garantir a qualidade dos produtos processados. Machamba-modelo da Agricultura Natural de Marracuene.

O uso de máscaras e mesmo luvas descartáveis também é altamente recomendável, pois irão ajudar a garantir ainda mais a sanidade e qualidade dos produtos agrícolas. Mas independentemente de se usarem máscaras e luvas, é importantíssimo lavar bem as mãos antes de qualquer atividade de contato direto com os alimentos.

Ambiente de trabalho
Preferencialmente o ambiente em que o trabalho de higienização e manipulação dos alimentos for feito deverá ser protegido contra o vento, sol, chuva, sujidades, etc. O ideal é dispormos de uma sala azulejada, ou seja, com as paredes revestidas por cerâmicas impermeáveis e piso lavável de tijoleiras. Entretanto, sabemos da realidade da maior parte do interior em África e da incapacidade, na maior parte das vezes, de garantir esse tipo de instalação. Sendo assim, o ideal é que o local seja arejado, livre da circulação de animais domésticos, curiosos e que seja tudo muito bem organizado. Na medida do possível, o ambiente escolhido para essas atividades deve ser de uso exclusivo das pessoas que irão desenvolver a atividade e reservado apenas para essa etapa do trabalho com os produtos agrícolas. Por exemplo, não convém misturar nesse mesmo ambiente o depósito de combustíveis, ferramentas de campo ou outros materiais do gênero.

Qualidade da água
A água que será usada para lavar nossos produtos deve ser isenta de quaisquer sujidades e contaminações químicas e microbiológicas. O ideal é que se usem águas provenientes de furos e que sejam devidamente armazenadas em tanques fechados para evitar qualquer tipo de contaminação. Águas provenientes de poços também podem ser usadas mas cuidados adicionais com o próprio poço serão necessárias para se garantir que nenhum material estranho venha a cair nele, o que fatalmente reduzirá a qualidade de suas águas. Nesses casos também, o cuidado com os materiais como baldes, cordas, etc. que forem ser usados para retirar a água são de extrema importância.
No caso de se ter como única opção o uso de águas diretamente de rios, deve-se atentar para possíveis contaminações de suas águas por esgotos sanitários, resíduos industriais, agrotóxicos, etc. Na nossa escala de trabalho não recomendamos o uso dessa fonte de água diretamente para a higienização e manipulação de nossos alimentos colhidos.

NOTA: A opção, que infelizmente nem sempre será barata e disponível, é fazer essa água passar por um processo de tratamento adequado. Portanto, tenha em mente no planejamento global do seu trabalho com a terra que num determinado momento será necessário ter uma fonte de água limpa e potável para um melhor aproveitamento dos resultados do campo. Como investimento recomendado numa determinada propriedade, indicamos a abertura de poços ou mesmo furos e isso, dependendo das condições, poderá ser feito por sistemas de cotas e parcerias com outros agricultores da sua região.

Ainda no caso das água de poços e furos, ou mesmo daquela servida pelos sistemas de distribuição de água das companhias de saneamento, que possuam historial de problemas derivados de contaminações microbiológicas, pode ser interessante fazer o uso da desinfecção caseira. Para isso, prepare um reservatório de plástico, como tanques de água, e limpe-os bem. Em seguida, encha-os com a água que ira ser usada e adicione 1 colher de javel (água sanitária) para cada 200 litros de água. Deixe essa água em repouso por uma noite para que todos os microrganismos nocivos sejam mortos e os resíduos de javel sejam evaporados. Retire essa água do tanque com auxílio de torneiras e nunca introduza baldes ou outros recipientes no seu interior.
Essa é uma forma de tentar minimizar problemas decorrentes da contaminação de microrganismos patogênicos veiculados pela água provenientes, principalmente, de resíduos fecais que possam entrar em contato com as fontes de água. Contudo, se conseguir garantir a correta limpeza e isolamento da fonte de água, esses cuidados de desinfecção poderão ser minimizados e dai a importância de investir algum tempo e dinheiro na garantia da qualidade da água disponível, quando isso for o caso.

Higienização dos produtos agrícolas
Agora que já garantimos a higiene pessoal, a limpeza e organização do espaço de trabalho bem como os utensílios que serão usados, e finalmente garantimos a qualidade da água para essa etapa do trabalho, passaremos para a higienização dos produtos, propriamente dito.
As folhas recém colhidas podem ser imersas em água limpa, para retirar os resíduos de terra e outras sujidades. Uma forma de garantir a eficiência dessa operação é dispor de dois ou três recipientes com água que deverá ir sendo trocada de tempos em tempos. Imergimos as folhas no primeiro tanque e depois vamos transferindo para os seguintes. Desse forma, ao final do último recipiente, já temos produtos bem limpos e melhor apresentados.
Após essa etapa de limpeza das folhas, deve-se fazer uma inspeção minunciosa para garantir que não restam resíduos e principalmente insetos. Vamos lembrar que estamos a praticar a Agricultura Natural, que segue as leis da Natureza. Isso quer dizer que convivemos com o mundo natural e seus habitantes! Muitos desses bichinhos que vêm junto com nossas colheitas estão nos ajudando a controlar outros que poderiam nos trazer enormes prejuízos ao comerem grande parte de nossos produtos ainda no campo. Portanto, não é recomendado que pensemos neles como um incômodo, pois na verdade, a grande maioria deles são nossos colaboradores. Porém, é claro que sua presença nos produtos a serem consumidos ou comercializados não é adequado e por isso devemos garantir que não estarão a andar nos nossos pratos ou nas nossas bancas de venda.
Já com os tubérculos e raízes temos uma dificuldade a mais que é a grande quantidade de terra que normalmente acompanha esses produtos ao serem colhidos. O que normalmente fazemos é deixar um recipiente grande com água e deixar as raízes por uns 20 ou 30 minutos imersas nela para amolecerem a terra que vem com elas. Em seguida, com a ajuda de uma esponja ou pedaço de pano, retiramos a lama que se forma e só depois transferimos os produtos para outro recipiente com água mais limpa. Vamos repetindo essa operação até que toda a nossa colheita esteja devidamente limpa e deixamos as raízes e tubérculos secando à sombra.
Também nessa etapa vamos selecionando os nossos tubérculos, podendo separá-los por tamanho sempre que isso for conveniente em termos de vendas. Recomenda-se que, na medida do possível, esses produtos sejam vendidos inteiros, com suas folhas e mesmo as pontas de suas raízes sem serem retiradas. Muitos tubérculos possuem nutrientes nessas partes e como não fazemos uso de agrotóxicos, o consumo de suas folhas não só é possível como também altamente recomendado. Por exemplo, as folhas das cenouras e beterrabas são excelentes em refogados e sopas e a apresentação desses produtos com suas folhas originais tende a valorizá-los ainda mais.
No caso da mandioca, o ideal é que sejam consumidas o quanto antes após sua colheita. Se passar muito tempo, pode acontecer dela começar a escurecer e isso fará com que perca alguns de seus nutrientes e qualidade de cozimento. Portanto, é bom programar bem a colheita em função da previsão de venda ou consumo para que sempre possamos oferecer produtos de melhor qualidade.
As frutas também tem seus próprios meios de serem limpas e preservadas. O ideal é que ao serem colhidas evitem-se romper as cascas. Por exemplo, no caso das tangerinas, o ideal é que o fruto ainda mantenha o seu talo evitando expor o interior da fruta. Dessa forma, ao serem lavadas não corremos o risco de deixar a água entrar em contato com a polpa o que fatalmente irá estragá-la. Papaias, mangas, massalas, etc. seguem o mesmo raciocínio. No geral, os próprios agricultores podem ir fazendo suas observações e descobrindo sempre melhores condições de preservar as diversas frutas, principalmente as nativas de cada região, compartilhando seus conhecimentos e aprendizados com os agricultores de sua comunidade.

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