Planejando a produção e preparando
o solo
(Capítulo 5 do Livro do Curso de Agricultura Natural de Moçambique)
A
essa altura, o leitor/estudante certamente já deve ter percebido que nesse
nosso curso de Agricultura Natural estamos evitando ao máximo indicar receitas
ou fórmulas para desenvolver o trabalho natural da terra. De fato, temos por
hábito informar às pessoas que se interessam em aprender um pouco mais sobre a
Agricultura Natural que ensiná-la, na verdade, é algo quase impossível, pelo
menos num período de tempo inferior, digamos, a uns 20 ou 30 anos. Por outro
lado, nosso esforço vem sendo em tentar compartilhar com as pessoas uma nova
forma de enxergar o mundo ao seu próprio redor. Ao invés de ensinarmos
receitas, procuramos compartilhar conceitos.
Talvez
isso possa ser um pouco frustrante para aquele agricultor iniciante que deseja
obter seus resultados de maneira quase instantânea. Porém, costumamos dizer que
a natureza tem o seu próprio tempo e o cultivo segundo seus fundamentos precisa
levar isso em conta. Por outro lado, também temos a consciência de que nem
sempre é possível esperar meses, ou até anos, para que um campo agrícola se
torne uma espécie de modelo da Agricultura Natural para, só a partir daí,
começarem a vir os rendimentos para o agricultor e sua família.
Dessa
forma, precisamos encontrar uma espécie de caminho do meio, através do
qual seja possível garantir a subsistência e desenvolvimento da família
agricultora, à medida que o equilíbrio ecológico vá, gradualmente, sendo
estabelecido na propriedade.
Quando
falamos em planejamento agrícola a partir do trabalho com a Agricultura
Natural, estamos nos referindo a uma forma bem diferente daquela conhecida
pelos agrônomos e técnicos especializados no agronegócio convencional. Aqui não
cabem as mesmas planilhas de cálculos em que se entram, por exemplo, com os
resultados das análises de fertilidade de solos e imediatamente conseguem-se os
receituários com as formulações e quantidades de fertilizantes necessários para
se garantir uma colheita, pré-definida, de uma determinada cultura agrícola.
Até porque tentar fazer isso numa propriedade agroecológica em que se cultivam
dezenas de espécies de plantas diferentes na mesma machamba, dividindo muitas
vezes os mesmos espaços, esse tipo de cálculo pode ser muito difícil senão
quase impossível.
Na
lógica do trabalho natural, precisamos levar em conta que a ordem dos
fatores pode sim mudar os resultados finais. Por exemplo, na nossa
experiência com as machambas, observamos que, até certo ponto, quem determinada
a quantidade de uma certa cultura a ser plantada é o próprio campo. Quando é o
agricultor quem determina a quantidade que ele quer colher, o que parece ser o
mais lógico pelo senso comum, pressionado pela demanda do mercado
consumidor, raramente ele irá prestar a devida atenção na capacidade
natural do seu campo em atender às demandas externas. O resultado dessa
forma de agir é um aumento considerável da artificialidade do sistema.
Em outras palavras, provavelmente irá ser necessário alterar, e muito, as
condições naturais de um campo para ele conseguir atender às expectativas de
produção.
Por
esse motivo é que na estratégia de produção natural ou orgânica de alimentos, a
biodiversidade é de suma importância. A lógica é consideravelmente diferente
daquela lógica convencional de cultivo, onde se preferem grandes campos de
monocultivo no lugar de diversificar a produção agrícola com dezenas de plantas
diferentes. Evidentemente que isso também leva à necessidade de desenvolver
novas formas de comércio dos produtos agrícolas, e vamos estudar um pouco mais
sobre isso ao final do curso.
Quando
falamos em planejamento agrícola, nossa visão vai muito além da simples relação
área a ser cultivada e produtividade alcançada. Nosso objetivo na Agricultura
Natural é garantir que a produção de alimentos respeite o seu meio-ambiente de
forma a garantir permanentemente a produção agrícola ao longo dos anos e
gerações. Nesse sentido, alguns
passos iniciais são fundamentais para o sucesso do nosso trabalho.
Observação e interação
Consideramos
fundamental observar atentamente
as condições naturais do solo de uma determinada propriedade antes de tentar
estabelecer as metas de produção agrícola. Isso está de acordo com o princípio
de minimizar a artificialização do meio através de técnicas exageradas de
correção de solo, aração e outros. Além disso, é preciso ter em conta o balanço
hídrico necessário para o pleno desenvolvimento das culturas plantadas. Por
exemplo, se na propriedade a água é um fator limitante, escolher culturas que
demandam grande quantidade dela como bananeiras, inhames e outros, não será, de
forma alguma, uma estratégia interessante.
Importante
estar alerta para todos os elementos do sistema como ventos predominantes,
existência de barreiras naturais como árvores, depressões no solo, zonas
úmidas, etc. Conhecer cada metro quadrado da área onde será implantada sua
lavoura ou machamba será muito útil e poderá trazer, a médio e longo prazo,
informações valiosas a respeito dos resultados parciais alcançados.
Também
é importante conhecer quais as espécies de animais que habitam a área tais como
pássaros, lagartos, cobras, roedores, etc. As abelhas são fundamentais para
garantir a polinização das futuras culturas e sendo assim, tentar identificar o
local das colmeias, assim como os ninhos dos pássaros também será interessante.
Nas nossas machambas, esses locais são considerados verdadeiros santuários
e todos os esforços são empregados para preservar todas as espécies de animais
ali presentes.
As
plantas nativas, com suas floradas periódicas, também são responsáveis por
manter todo um universo de insetos e pequenos animais. Sendo assim, um
levantamento das espécies existentes, com a devida interpretação da sua
presença no campo conforme discutimos anteriormente (plantas indicadoras), será
valioso para definirmos os futuros locais de cultivo.
Captação e armazenamento
de energia
Na
ânsia de logo obter os resultados agrícolas, a maioria dos agricultores, quando
inicia o seu trabalho numa determinada área, logo promove a chamada limpeza do
terreno. Porém, o que ele de fato acaba por fazer é desperdiçar enormes
quantidades de energia acumulada, muitas vezes ao longo de anos, na forma de
biomassa, resultado direto da absorção da luz solar e de complexos sistemas
metabólicos. Toda a vegetação inicialmente presente numa determinada área
representa um incomensurável esforço da natureza em abastecer o solo com a
energia vital para que possamos, no seu devido tempo, cultiva-lo e obter nossos
alimentos verdadeiramente saudáveis.
Dessa
forma, uma etapa muito importante do planejamento agrícola, no nosso
contexto de trabalho, refere-se ao reconhecimento da necessidade de não apenas
tentar aproveitar integralmente a energia natural de um terreno como também em
promover as ações necessárias para manter e, até certo ponto, aumentar a sua
capacidade em acumular essa mesma energia.
Já
discutimos a importância das árvores e sendo assim, uma forma de preservar e
aumentar a energia de um campo é preservar todas as árvores que forem possíveis.
Se eventualmente houver mesmo a necessidade de retirar algumas delas, é
extremamente recomendável plantar outras nas proximidades daquelas que foram
retiradas.
Muitas
vezes os agricultores “abrem” o solo com máquinas agrícolas pesadas, como por
exemplo o trator acoplado ao arado ou grade niveladora, e o deixam exposto ao
sol e chuva sem nada a ser cultivado. De fato, muitas vezes para que possamos
cultivar o nosso solo será necessário promover algumas operações com a ajuda de
maquinaria. No entanto, só devemos realmente preparar áreas que irão ser
imediatamente cultivadas. Do contrário, é preferível que as deixemos mantidas
com sua vegetação, preferencialmente nativa. Mas também podem ser plantadas
diversas espécies de plantas que promovam um condicionamento melhor do solo
como girassóis e diversas outras culturas como as leguminosas, que são
excelentes fixadoras de nitrogênio. Dessa forma, promovemos o cultivo do
sol, uma forma diferente e elegante de dizer que iremos produzir matérias-primas
para a obtenção de nosso adubo natural.
No
período chuvoso e de altas temperaturas, é interessante tentar fazer com que o
nosso campo absorva e acumule o máximo de energia possível. O plantio de
espécies fixadoras de nitrogênio, de espécies que produzem muita biomassa e de
outras que promovam a biodiversidade, é uma estratégia muito interessante para
enriquecer nossos solos.
Vivemos em um mundo de riquezas sem
precedentes resultantes da coleta de enormes estoques de combustíveis fósseis
criados pela Terra ao longo de bilhões de anos. Temos utilizado parte dessas
riquezas para aumentar nossa colheita dos recursos renováveis em proporções
insustentáveis. A maior parte dos impactos adversos dessa excessiva colheita
ficará mais evidente na medida em que a disponibilidade de combustíveis fósseis
for diminuindo. Em linguagem financeira, estamos consumindo o capital
principal de forma irresponsável, o que levaria qualquer empresa à
falência.
Precisamos
aprender como economizar energia e reinvestir a maior parte da riqueza que
estamos consumindo ou desperdiçando atualmente, de modo que nossos filhos e
descendentes possam ter uma vida igual ou melhor que a nossa.
Conceitos
inapropriados de riqueza nos levaram a ignorar oportunidades para capturar
fluxos locais de formas renováveis e não-renováveis de energia. Identificar e
atuar nessas oportunidades pode suprir a energia com a qual poderemos
reconstruir o capital principal, bem como proporcionar renda para nossas
necessidades imediatas.
O
sol, o vento e os fluxos de escoamento superficial de água, quando bem
manejados, são algumas das fontes de energia que podem ser utilizadas para o
bem comum não só da propriedade, mas também de toda a comunidade do seu
entorno.
Segundo
alguns estudiosos, os estoques mais importantes com valor futuro, ou
seja, uma espécie de poupança para o
futuro, incluem:
· Solo
fértil com alto teor de matéria orgânica;
· Sistema
de vegetação perene, especialmente árvores, produção de alimentos e outros
recursos úteis;
· Corpos
e tanques de água;
· Edificações
com utilização de energia solar.
Obtenção e otimização dos
rendimentos
Você
não pode trabalhar de estômago vazio. Como vimos até aqui, devemos planejar
qualquer sistema agrícola para que ele nos proporcione autossuficiência em
todos os níveis, utilizando energia capturada e armazenada eficientemente para
manter o próprio sistema e capturar mais energia.
Contudo,
sem uma produção útil imediata e verdadeira, qualquer coisa que projetarmos e
desenvolvermos tenderá a enfraquecer até a morte, enquanto elementos que geram
uma produção imediata proliferarão, ao menos nos primeiros anos.
Produção,
lucro ou renda funcionam como uma recompensa que encoraja, mantém e/ou reproduz
o sistema que gerou o rendimento. Desse modo, sistemas bem sucedidos se
disseminam. Em linguagem de sistemas, essas recompensas são chamadas de circuitos
de retroalimentação positiva.
Aqui
começa a aparecer um importante aspecto do trabalho com a Agricultura Natural quando
privilegiamos a biodiversidade de nossos campos. Uma das características de
sistemas dessa natureza é que eles permitem ao agricultor um fluxo constante
de produtos sendo colhidos e consequentemente comercializados. Por exemplo,
um agricultor que cultiva 20 ou 30 espécies diferentes de plantas, com ciclos
produtivos razoavelmente distribuídos ao longo do ano, terão muito mais
condições de manter suas feiras, digamos, semanais, bem abastecidas ao longo do
tempo. Do contrário, se forem cultivadas poucas espécies vegetais de cada vez,
como infelizmente acontece com grande parte dos agricultores, os rendimentos
tenderão a se concentrar em algumas poucas épocas ao longo do ano. Além disso,
é preciso levar em consideração que na maioria das vezes em que os agricultores
estão colhendo, por exemplo, o tomate, a maioria de seus vizinhos também o
estarão fazendo. A consequência imediata é uma acentuada queda dos preços e com
isso, os agricultores poderão ficar em sérios apuros.
Por
outro lado, a diversificação das culturas também abre a chance de agregação de
valores com as colheitas. A presença de frutas nativas, aliada à colheita de
outras como morangueiros, physalias (golden berry), etc., podem ser fontes
muito interessantes de renda a partir de doces e geleias produzidas pelas
famílias camponesas em instalações relativamente simples e de baixo custo de
implantação.
Plantar de acordo com a época certa
do ano
Muitas
vezes, por pressões do mercado, ocorre dos agricultores tentarem a todo custo
forçar a natureza de muitas plantas cultivadas. Um exemplo clássico é o caso
das alfaces que, sendo plantas originárias de climas mais amenos e que
necessitam de condições mais favoráveis de chuvas, hoje são cultivadas em
praticamente qualquer parte do planeta. Evidentemente que isso trouxe
consequências sérias como a crescente fragilização das inúmeras variedades de
alface melhoradas geneticamente ao longo das últimas décadas. Além disso, em
muitos lugares onde a água é escassa, com pouca precipitação pluviométrica ou
ainda onde as chuvas não são regulares ao longo de todo o ano, apela-se para
sistemas de irrigação que muitas vezes acaba por consumir quantidades muito
grandes de água, podendo até ocasionar sérios danos às populações locais no
futuro. Esse é mais um exemplo de artificialização excessiva dos sistemas
agrícolas e, segundo os fundamentos da Agricultura Natural, mais cedo ou mais
tarde a natureza irá cobrar o seu preço.
Portanto,
saber escolher que espécie plantar e qual a melhor época do ano é fundamental
para o agricultor obter sucesso no seu trabalho. Existem muitas variedades de
plantas que foram, ao longo do tempo, sendo adaptadas para esta ou aquela
condição climática, especialmente em relação à temperatura ambiente e à
quantidade de luz solar disponível ao longo dos dias. Não é difícil encontrar
sementes de plantas no mercado que são “indicadas”, por exemplo, para serem
cultivadas no verão, embora sejam plantas originalmente de climas frios. O
agricultor poderá escolher dentre muitas espécies diferentes, mas aconselhamos
que fique atento para o princípio de que, do ponto de vista da Grande Natureza,
muitas destas plantas são estranhas ao ambiente onde ele vive e trabalha.
Portanto, ele deverá levar em conta esse fato, principalmente nas eventuais
ocorrências de pragas e doenças.
Como
forma de auxiliar na escolha das culturas a serem semeadas e cultivadas ao
longo do ano, apresentamos o nosso calendário agrícola, elaborado a partir da
observação de campo ao longo dos últimos anos nas condições climáticas da
província de Maputo, em Moçambique.
Começando a preparar o solo
Viemos
até aqui discutindo diversos conceitos que irão nos ajudar a compreender um
pouco mais sobre diversos aspectos da Agricultura Natural. Se este livro fosse
um manual agrícola típico, talvez tivéssemos iniciado nossa discussão de uma
maneira completamente diferente da que estamos apresentando aqui. E isso não é
sem motivo. Pela ciência convencional, o solo é visto apenas como um suporte
“inerte” (portanto, sem vida) que irá manter nossas culturas e ainda um meio
físico através do qual as plantas podem obter seus nutrientes, sejam eles de
fontes naturais ou artificialmente fornecidos pelo homem.
A
esta altura, esperamos que já tenha ficado claro para todos os leitores, que na
nossa abordagem de trabalho, o solo, e portanto o seu preparo, constitui num
dos passos fundamentais que irão propiciar, no futuro, as colheitas fartas e
sadias típicas da Agricultura Natural. No capítulo 3, do Módulo 1 do nosso
livro do curso, tivemos a oportunidade de apresentar a visão de Mokiti Okada
sobre o solo. Aconselhamos vivamente ao leitor que releia aquele capítulo e
repita esse procedimento tantas vezes sejam necessárias, até que fique bem
claro o ensinamento por ele apresentado. Em outras palavras, tudo
começará pela forma com que iremos tratar o nosso solo, se como um ser
vivo ou apenas um amontoado de rochas pulverizadas, argilas e areia.
O
preparo do solo para a prática da Agricultura Natural envolve diversas etapas
de trabalho. A primeira delas foi a discussão anterior, reconhecendo-o como um
ser vivo que necessita de todos os cuidados para que possa manifestar sua
verdadeira natureza. Na sequência do trabalho, procuramos sempre manter o solo
coberto com algum tipo de vegetação, como por exemplo, leguminosas que
funcionam como adubação verde. Nas condições ideais, essas coberturas
verdes conseguem manter os solos protegidos das intempéries do sol e das chuvas
fortes e propiciam um meio através do qual bilhões de micro-organismos irão
naturalmente se fixar a eles.
Cobertura do solo com feijão-guandu
e abóbora. Note a cobertura morta de capim nas entrelinhas dos plantios. Polo
de Agricultura Natural da Moamba.
A
presença de matéria orgânica no solo é de suma importância. Porém,
diferentemente do que a maioria das pessoas pensam, a matéria orgânica não é
adubo. Ela é alimento para a vida microbiana aeróbica do solo, responsável por
fixar o nitrogênio atmosférico e mobilizar diversos nutrientes minerais
presentes nos constituintes dos solos. Tendo essa informação como base, vemos a
importância de cuidarmos de forma adequada de nossos solos, antes mesmo de
lançarmos nossas sementes ou transplantarmos nossas mudas.
O
uso de maquinaria pesada, principalmente com o uso do arado ou grade, pode
provocar em pouco tempo a desestruturação física dos solos, ao permitir
a formação de uma laje de compactação, normalmente localizada a uns 20
ou 30 cm de profundidade. É essa laje de compactação a principal responsável
por impedir a percolação da água para camadas mais profundas do solo bem como a
formação de agregados originários da atividade microbiológica benéfica. Com o
tempo, a água estagnada na superfície tenderá a provocar uma compactação muito
mais acentuada do solo e como consequência disso, com o passar do tempo, pode
não restar outra alternativa senão o abandono da área por até muitos anos.
Preferencialmente,
devemos usar máquinas leves para a execução dos trabalhos de preparo dos nossos
solos. Além disso, devemos também prestar bastante atenção nas condições de
umidade, pois as atividades mecânicas, se executadas com o solo úmido, podem
provocar danos ainda maiores favorecendo também a compactação.
Para um solo ser
considerado saudável ele deve ser agregado, ou seja, deve apresentar uma
porosidade suficiente que permita a penetração adequada das raízes das plantas,
a entrada de ar, necessária para o desenvolvimento dos micro-organismos
benéficos, e também, como já mencionamos, a água. Conhecendo melhor o solo, sua
fertilidade, interação com os insetos e micro-organismos, além do funcionamento das plantas,
compreenderemos melhor os processos da natureza e, com a ajuda dela, o nosso
trabalho tenderá a ser bem-sucedido.
No solo existem
milhares de seres vivos de inúmeras espécies diferentes, que interagem e se
complementam no processo de decomposição da matéria orgânica. Toda essa
atividade biológica acaba por promover a disponibilização dos nutrientes
necessários para o desenvolvimento vegetal em quantidades adequadas e equilibradas.
É esse conjunto de vida, matérias decompostas e nutrientes disponibilizados que
dá qualidade ao solo. Esta qualidade significa mais fertilidade, estrutura e
umidade, dentre outros fatores. Quanto mais vida, mas fertilidade há no solo.
Quanto mais fertilidade, maior garantia de saúde para as plantas e animais. E
quanto mais saúde, maior produtividade do sistema de produção.
De forma geral,
existem três tipos de solo: arenoso, areno-argiloso e o argiloso. Cada um
destes três tipos de solo apresenta certas peculiaridades que lhes são
inerentes e que definem as suas potencialidades para o desenvolvimento de
determinadas culturas. Assim, existem culturas que se adaptam melhor a solos
arenosos, como é o caso do amendoim e do feijão-nhemba, outras a solos argilosos
e assim por diante. Cabe a cada agricultor, portanto, observar, estudar e
aprofundar nestas particularidades e definir o melhor sistema de plantio a ser
adotado, de acordo com a realidade encontrada no local.
Manejo ecológico do solo
Como já vimos,
para um manejo ecológico do solo devemos introduzir os conceitos básicos para
que os praticantes possam conduzir sua produção agrícola natural, de forma a
aproveitar o máximo do potencial existente no local e permitir maior interação
com a natureza e os fatores que predispõem ao sucesso desse tipo de produção.
Dentre esses conceitos já citamos a biodiversidade, introdução de barreiras de
vento, adubação verde e o consórcio de culturas. Falta-nos ainda discutir um
pouco mais sobre a cobertura do solo e o aumento do sistema radicular das
plantas.
A prática da cobertura
do solo é uma técnica extremamente importante nos trópicos, uma vez que ela
auxilia na redução da temperatura do solo, principalmente em épocas muito
quentes e, ainda, o protege contra o calor intenso, o impacto das chuvas e dos
ventos fortes. Essa prática contribui para a redução de perdas do solo por
erosão, além de auxiliar na estruturação e na manutenção da sua umidade,
garantindo assim, economia de água na produção agrícola.
A cobertura do
solo consiste na aplicação de materiais de origem vegetal sobre a superfície,
podendo este ser material seco (cobertura morta), bem como material verde
(cobertura viva), na forma da própria vegetação espontânea natural da região. O
plantio adensado das culturas também pode representar o papel de cobertura viva
no solo.
O ideal é que esta
cobertura seja feita com materiais disponíveis na propriedade, tais como palhas
de capim, cana, caniço, cascas de árvores e outros materiais. Uma das
alternativas que estamos utilizando em Moçambique é o uso de caniço para
recobrir muitos dos nossos canteiros. O caniço é um material relativamente
barato e de fácil acesso à população moçambicana e o seu uso traz muitas
vantagens além da proteção dos solos contra as chuvas torrenciais. O caniço
também ajuda a manter a umidade do solo e uma temperatura mais amena, normalmente
na casa dos 20 aos 25oC ao longo de todo ano. E além disso, é um produto
natural, que irá se decompor ao longo dos anos enriquecendo ainda mais o
solo com matéria orgânica, contrariamente ao que acontece, por exemplo, quando
se usam lonas de plástico preto. Do ponto de vista biológico, o caniço permite
que o solo respire muito mais facilmente e consiga atingir um equilíbrio mais
interessante entre as culturas cultivadas e as espécies espontâneas.
Aqui também entra
o raciocínio já discutido anteriormente da necessidade de minimizar a
artificialização dos sistemas agrícolas, principalmente quando trabalhamos com
a Agricultura Natural. Acreditamos que nossas intervenções, quando necessárias,
devem levar em conta a capacidade da própria natureza em restabelecer seu
equilíbrio original de forma mais pacífica. Fornecer aos campos uma
alternativa natural de
cobertura, ao invés de forçar o sistema todo com o emprego de materiais
não-biodegradáveis e que ainda alimentam toda uma cadeia de produção química
industrial, como são os plásticos, vai ao encontro com o raciocínio de
privilegiar os ciclos naturais de todo o nosso meio ambiente.
Uso do caniço para cobrir canteiros de
produção agrícola. Machamba Modelo da Agricultura Natural em Marracuene.
Dentre outros
benefícios da cobertura do solo, podemos ainda citar o estímulo ao
desenvolvimento das raízes das plantas, que se tornam mais eficazes em absorver
água e nutrientes do solo; o aumento da capacidade de infiltração de água,
reduzindo a erosão; controle da vegetação espontânea (note-se que não
falamos em eliminação da vegetação espontânea); ativação da vida do solo,
favorecendo a reprodução natural de microrganismos benéficos às culturas
agrícolas; e abrigo para diversas espécies de pequenos animais e insetos,
contribuindo para o equilíbrio ecológico do sistema.
Otimizando os espaço
Para finalizarmos
esse capítulo, gostaríamos de discutir agora uma questão estratégica, que
muitas vezes pode significar a própria viabilidade dos campos agrícolas a serem
implantados, principalmente em termos de sua sustentabilidade a longo prazo.
Trata-se de como ocupar o nosso terreno com os campos e canteiros.
A permacultura
introduziu o conceito de design agrícola aos campos de cultivo. A lógica
desse trabalho leva em consideração usar os espaços de maneira inteligente e,
consequentemente, mas eficaz. Uma discussão mais detalhada do design permacultural
pode ser encontrado através de algumas das referências bibliográficas ao final
desse módulo da apostila.
Mas um aspecto
interessante e que gostaríamos de aprofundar um pouco mais aqui diz respeito à
forma com que muitas vezes organizamos nossos canteiros e machambas. O modelo
que apresentaremos não foi desenvolvido inicialmente por nossa equipe e
acreditamos que já exista há muito tempo espalhado pelo mundo afora. Trata-se
da configuração mandala. Mas antes de continuarmos, vale a pena
ressaltar que o nosso manejo do solo não é refém desse tipo de configuração.
Apenas damos a ele certa preferência por apresentar muitas vantagens em termos
dos baixos custos de implantação, melhor gerenciamento da área, economia de
energia, etc. Contudo, em determinadas circunstâncias, podemos e fazemos uso de
outras configurações em nossos campos.
Uma horta ou
machamba mandala, como por vezes a chamamos, é constituída por uma série de
canteiros circulares concêntricos. Normalmente instalamos nossa fonte de água
no centro dessas mandalas para que possamos ter um melhor controle das
operações de irrigação, com considerável redução do esforço físico. Isso porque
nem sempre é possível termos à mão os sofisticados sistema de irrigação e por
vezes, mesmo em algumas de nossas áreas, somos obrigados a realizar a irrigação
manual. Esta é, aliás, a realidade da maioria dos agricultores camponeses no
interior de África. E por isso mesmo, algumas de nossas machambas são mantidas
intencionalmente com o mais baixo nível de tecnologia externa, exatamente para
que sirvam como referência de trabalho para pequenos agricultores familiares.
Na configuração
mandala temos muitas vantagens operacionais. Por exemplo, a eficiência das
barreiras de vento quando instaladas nas bordas de canteiros circulares
concêntricos traz a vantagem de proteger todo o perímetro da área interna,
independente da direção do vento num determinado dia. Assim, não precisamos nos
preocupar com a questão das direções preferenciais dos ventos que, em muitas
regiões, mudam com o passar dos meses.
Outro aspecto
interessante diz respeito à economia de energia. Exemplifiquemos isso com um
pequeno exercício. Vamos imaginar que nosso agricultor camponês irá implantar
sua machamba numa área de 2.500 metros quadrados. Agora vamos imaginar que ele,
como a grande maioria dos agricultores, queira configurar sua área de forma
retangular, e nesse caso vamos supor que o faça de maneira que a área tenha as
dimensões de 20 x 125 metros. Agora, para efeito didático, vamos supor que a
única fonte de água disponível esteja localizada numa das extremidades dessa
área. O leitor provavelmente já deve ter visto áreas de cultivo coletivo pelo
interior de Moçambique ou mesmo em outros países, onde os agricultores se
instalam ao redor de fontes de água em lotes retangulares. Portanto, nem é tão
difícil assim imaginar esse nosso exemplo.
Agora vamos
considerar as operações de irrigação manual. Como pode ser visto pelo diagrama
a seguir, na configuração de terreno considerada, nosso agricultor terá de levar
a água a uma distância de até 125 metros da sua fonte. Considere que muitas
vezes ele só dispõe de regadores manuais e tenha uma noção do esforço
gigantesco que ele será obrigado a fazer durante todo o dia, sete dias por
semana, 54 semanas por ano e assim por diante. A esse esforço, nossa equipe
costuma dar o nome de índice de xima[1].
Em outras palavras, nosso agricultor gastará enormes quantidades de energia e
tempo que, de outra forma, poderiam estar sendo empregados em outras atividades
mais cruciais em sua machamba. A irrigação é só uma das operações que demandam
gasto de energia. Também é preciso considerar os tratos culturais como um todo,
desde o transplantio de mudas até a capina, sem esquecer, é claro, das
colheitas.
Diagrama dos canteiros retangulares
e nos formatos de mandala.
Já num sistema
mandala, temos uma lógica bem diferente. Para a mesma área de 2.500 metros
quadrados, podemos instalar nossos canteiros dentro de um espaço de 50 x 50
metros. Isso quer dizer que na nossa mandala, a partir do centro onde estará
nossa fonte de água, a maior distância que o agricultor precisará percorrer, em
qualquer que seja a direção, será de apenas 25 metros. Isso corresponde, a
grosso modo, uma redução de 80% do esforço empregado!
Claro que essa é
uma simplificação do cálculo, pois é preciso considerar muitas variáveis para
tentar chegar a um número mais preciso. Mas o importante aqui é apresentar a
lógica do trabalho quando tentamos otimizar nossos espaços e campos de cultivo.
Por outo lado, existem inúmeras variações desse tipo de configuração e a
escolha do modelo a ser adotado ficará a critério, claro, dos próprios
agricultores. A intenção de apresentar esse modelo aqui é de apenas dar uma
referência a mais e mostrar algumas das vantagens de se gastar algum tempo
planejando as atividades antes de iniciar o cultivo da área propriamente
dito.
Implantação da Machamba Modelo da
Agricultura Natural em Marracuene, em formato mandala.
Demarcação dos canteiros nas
mandalas
É
muito simples implantar uma mandala. Para facilitar a marcação dos canteiros,
podemos utilizar estacas de madeira, fita métrica e cordas para definir os
limites de cada canteiro. Assim, colocamos as estacas em cada limite, amarramos
uma corda em cima da superfície do solo e iniciamos o levantamento dos
canteiros com o auxílio da enxada. Para solos arenosos deve-se tomar o cuidado
para fazer pequenas bordas, transformando o canteiro em pequenas bacias, para
que a água de rega não escorra lateralmente pelos canteiros. Já no caso de
solos de textura média ou argilosos, esse tipo de formato de canteiro não é o
mais recomendado, pois algum eventual excesso de água de irrigação poderá fazer
com que se criem lodaçais nessas pequenas bacias. Nesse caso, o melhor é
levantar os canteiros como mostrado na figura abaixo.
Perfil dos canteiros construídos em terrenos arenosos
no formato de bacias.
Perfil dos canteiros construídos em terrenos com solo
de textura média e argilosos, no formato “normal”.
Incorporação de matéria orgânica
Após
o preparo dos canteiros, iniciamos a incorporação do material orgânico (restos
de folhas, de capim, composto, etc.) e revolvemos a terra, juntamente com o
material orgânico até o limite máximo de 20 cm. Em seguida, nivelamos o
canteiro e cobrimos com capim seco, deixando o solo em preparo por até 10 dias. Se o material incorporado for
constituído por folhas secas e capim seco, bem como material proveniente da
compostagem, o período de preparo pode ser reduzido para 5 dias, ou menos. Estes prazos dependerão da
natureza do material utilizado e das observações dos próprios agricultores.
Durante
o período de preparo, o solo deve ser molhado diariamente, apenas para manter a
umidade. Se observar que o solo está úmido, não é necessário fazer rega. Após
esse período, devemos verificar o cheiro do solo. Se estiver com cheiro
agradável, como se fosse solo de mata virgem, o canteiro está pronto para ser
semeado.
[1] Xima é um alimento tradicional feito a partir da farinha de milho branco e
muito consumido pela população Moçambicana. Em outros países africanos existem
variações do prato como é o caso do fungi em Angola. No Brasil, o angu seria um
prato muito similar.
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