Manejo agroflorestal
(Capítulos 4 e 6 do Livro do Curso de Agricultura Natural)
Em
uma definição ampla, sistemas agroflorestais (SAFs) são combinações do
elemento arbóreo com herbáceas e/ou animais, organizados no espaço e/ou
tempo. Por outras palavras, são sistemas
nos quais não só mantemos nossas árvores na machamba como também plantamos muitas
mais. O conceito de agroflorestas é muito amplo e a literatura está repleta de
textos e referências técnicas sobre o assunto. Por isso, vamos nos concentrar
em alguns aspectos práticos do manejo agroflorestal quando aplicados ao
conceito e prática da Agricultura Natural. No final desta apostila, o leitor
encontrará uma série de referências bibliográficas sobre o tema que poderá
auxiliá-lo numa compreensão mais profunda desses sistemas.
Não
custa nada repetir mais uma vez que na Agricultura Natural estamos nos
esforçando para procurar compreender e replicar algumas das leis fundamentais
da natureza. Vimos na aula anterior a importância da biodiversidade e das redes
de interação agroecológica na produção natural de alimentos. Por sua vez, as
árvores desempenham um papel fundamental na manutenção das redes de sustentação
da vida, e passaremos a descrever algumas das suas funções no manejo natural de
nossos campos e machambas.
O que é uma árvore?
Vamos
começar abordando o tema do manejo agroflorestal de uma forma um pouco diferente
da maioria dos manuais e livros sobre o assunto. Essa abordagem, contudo, é
fruto da nossa experiência de campo no ensino da Agricultura Natural e foi
desenvolvida tendo por base as dúvidas mais comuns de nossos alunos ao longo
dos anos. Nesse nosso curso não estaremos muito presos aos conceitos
acadêmicos, embora por vezes façamos referências a eles, sempre que isso nos
ajudar a compreender um pouco mais sobre a forma natural de cultivar nossos
solos e organizar nossas quintas e machambas, numa linguagem mais clara e,
portanto, de melhor compreensão de todos.
Então,
como primeira pergunta desse tópico temos: o que, afinal, é uma árvore? Antes
de responder a essa pergunta, vamos fazer um pequeno exercício:
EXERCÍCIO: Pegue uma folha em branco e desenhe uma árvore.
Esse
é um exercício simples, mas muito elucidativo para introduzirmos as pessoas na
questão da visão sistêmica da natureza e do mundo. Nosso modelo
educacional tradicional nos ensina a ter uma visão compartimentada do mundo ao
nosso redor. Isso quer dizer que, de certo modo, aprendemos desde cedo a
analisar somente aquilo que conseguimos ver, deixando de lado, ao menos num
primeiro momento, aquilo que por ventura possamos estar a sentir. O
mundo da razão científica, por vezes, acaba nos colocando em situações em que
nos é difícil enxergar com visão além do alcance dos nossos olhos.
Portanto, se o seu desenho de árvore, num primeiro momento, não tiver sido como
o da figura a seguir, não se preocupe, pois você estará respondendo como a
maioria das pessoas para as quais já realizamos esse teste antes.
Se você foi honesto com esse exercício e não olhou antes as imagens seguintes, deverá ter desenhado uma árvore mais ou menos como a da figura abaixo:
Se o seu desenho de árvore, num primeiro momento, não tiver sido como o da figura a seguir, não se preocupe, pois você estará respondendo como a maioria das pessoas para as quais já realizamos esse teste antes. Como
podemos perceber, uma árvore é muito mais do que aquilo que nossos sentidos
podem nos mostrar num primeiro momento. Além do tronco, galhos e folhas, as raízes
são fundamentais para que a própria árvore consiga se manter de pé e
saudável. Porém, como não estamos habituados a vê-las constantemente, nossa
razão acaba por nos trair e, sem nos darmos conta, esquecemos dessa parte
quando somos desafiados, como no exercício anterior.
Visão
sistêmica é a maneira de
conseguirmos integrar todos os elementos da natureza e relacioná-los ao nosso
trabalho agrícola, por exemplo. Uma árvore pode nos ser muito mais útil do que
apenas fornecedora de frutas, madeiras ou mesmo sombra, embora tudo isso tenha,
numa machamba agroecológica, um valor quase inestimável. Contudo, os benefícios
de uma árvore vão bem mais além. Além do precioso oxigênio, resultado direto do
processo de fotossíntese, as árvores também ajudam a regular o clima numa
região através da evapotranspiração, processo pelo qual enriquecemos
nossa atmosfera com água no estado gasoso e que, através desse processo físico,
conseguimos manter nossos campos com temperaturas mais amenas. Um campo
arborizado é muito mais confortável do que áreas com insolação direta. E esse
conforto não é só para os agricultores mas também para muitas de nossas
culturas.
Além
disso, as árvores também são responsáveis por mobilizar grandes quantidades de
nutrientes, oriundos das camadas mais profundas do solo, que de outra maneira
não conseguiriam estar disponíveis para as nossas culturas agrícolas.
Dependendo do porte e da espécie de árvore, suas raízes podem atingir dezenas
de metros de profundidade e também podem se espalhar por uma grande área, muito
maior do que aquela ocupada pela sombra de sua copa. Isso quer dizer que
podemos estar falando num volume de solo útil muito maior do que
convencionalmente se aceita para o caso das diversas culturas agrícolas. Mas
tenhamos sempre em mente que nosso sistema tenderá ser o natural, ou
seja, a mobilização de nutrientes nesse caso seguirá no seu tempo certo. Normalmente
os resultados positivos da mobilização de nutrientes num manejo em que se
preserve e até plante árvores num campo agrícola serão sentidos ao longo dos
anos, e não em semanas ou meses, como normalmente acontece com o manejo
convencional. Mas por outro lado, nossos sistemas ganharão muito em termos de resiliência,
ou seja, serão muito mais fortes e resistentes a quaisquer intempéries ou
imprevistos que a grande maioria dos sistemas convencionais.
Sombra na machamba?
A
agricultura convencional baseia-se na produção intensa de alimentos
(uniformizados e padronizados), no menor tempo possível e na menor unidade de
área por unidade de produção possível. Ou seja, tudo tem de ser muito rápido e
em quantidade. Nesse tipo de raciocínio, o bem estar de todo o sistema,
não é levado em consideração, talvez justamente pelo fato de não considerarmos
nossos campos como seres vivos que são.
O
sombreamento parcial de nossos campos ajuda muito no estabelecimento de um
clima muito mais agradável de se viver, trabalhar e no caso das plantas, de
produzir seus frutos. Evidentemente que temos muitas espécies de plantas que,
para produzirem de forma satisfatória, necessitam de grandes quantidades de
energia do sol e, portanto, gostam de
muito sol. Outras, por outro lado, preferem climas mais amenos e não
toleram a insolação direta, preferindo ser cultivadas à meia sombra, como é o
caso do morangueiro. Mas uma coisa é certa, a maioria absoluta dos vegetais que
cultivamos para obter nosso alimento possui uma temperatura de solo acima da
qual não conseguem mais obter água e, consequentemente, seus nutrientes. Essa
temperatura está na casa dos 32 o.C e representa um fator limitante
para a produção agrícola em regiões de clima quente como o que acontece nas
regiões tropicais e subtropicais. Retomaremos esse assunto no futuro.
É
importante, portanto, pensar no resultado da produção agrícola global de
nossos campos, ou seja, na soma e variabilidade de todos os produtos que possam
ser colhidos, comidos ou comercializados. A principal característica de
sistemas naturais de cultivo, como o que estamos descrevendo nesse curso, é a
biodiversidade dos campos e isso implica em conviver com muitas culturas
diferentes ao mesmo tempo. Por outro lado, existem estratégias de
produção que podem ser adotadas no sentido de aproveitar ao máximo os espaços,
a luz do sol e o clima mais ameno propiciado pelas sombras das árvores. Vejamos
um exemplo bem interessante.
Todo
agricultor com um mínimo de experiência no cultivo de beterrabas sabe que elas
são plantas que gostam de muito sol, embora necessitem de temperaturas baixas
para produzirem satisfatoriamente, razão pela qual o seu cultivo em países como
Moçambique é preferível nos meses que antecedem e no próprio inverno. Se
plantarmos beterrabas à sombra, ou mesmo à meia-sombra, suas raízes não irão se
desenvolver satisfatoriamente, deixando somente a parte aérea (folhas) bem
grandes. Muitas das culturas que dão debaixo da terra como rabanetes,
nabos, cenouras, etc., seguem o mesmo raciocínio da beterraba. Por sua vez, as
beterrabas são plantas que se dão muito bem com outras, razão pela qual podemos
consorciá-las com várias outras hortícolas,
etc. E são muito ricas nutricionalmente, razão pela qual os nutricionistas em
todo o mundo sempre fazem boas referências ao seu consumo. No entanto, o que
pouca gente sabe é que as folhas da beterraba também são comestíveis, podendo
ser consumidas de diversas maneiras, e que estudos apontaram que seus níveis
nutricionais são ainda maiores que os das próprias raízes. Em nossas machambas
é comum, portanto, o cultivo de beterrabas tanto a pleno sol quanto a
meia-sombra, sempre que isso for conveniente em termos de aproveitamento dos espaços.
E da mesma forma que as beterrabas, também os rabanetes, nabos e cenouras, por
exemplo, podem ter suas folhas muito melhor aproveitadas, seja no consumo em
forma de guisados ou mesmo em forma de aditivo alimentar (desidratação seguida
de trituração), compondo inclusive uma alternativa de renda adicional muito
interessante aos agricultores.
Construindo os quebra-ventos
Outro
aspecto muito interessante do manejo agroflorestal é a implantação dos chamados
quebra-ventos numa machamba ou campos agrícolas em geral. Sabe-se, por
exemplo, que num dia quente e com vento forte, podemos perder por evaporação
até 70% da água que irrigamos os nossos campos. Isso significa que para cada
100 litros de água irrigada, 70 litros são perdidos para a atmosfera sem que
tenham cumprido qualquer função biológica no solo ou fisiológica nas plantas.
Essa informação, portanto, é muito útil para o planejamento correto do trabalho
com a água nos campos, como veremos no final desse módulo.
Uma
forma de diminuir os efeitos negativos dos ventos fortes nos campos agrícolas é
introduzir quebra-ventos na forma de cortinas de espécies arbóreas plantadas
normalmente em linhas. Essas cortinas podem ser para delinear talhões, ou mesmo
toda a machamba, e a escolha correta das espécies de árvores, em função de sua
conformação, será muito importante.
O
vento é uma importante variável envolvida na produtividade das culturas em
geral, seja, como vimos, pelo fato de aumentar as perdas de água por evaporação
e transpiração dos cultivos comerciais (evapotranspiração), seja pelo fato de
disseminar vetores de doenças. No caso do cafeeiro, que é uma planta de baixa
tolerância aos ventos, a produtividade começa a cair com ventos acima de 2
metros por segundo (m/s), ou 7,2 km/h, e com ventos mais fortes, surgem danos
mecânicos nas folhas, que são portas de entrada para fungos e bactérias. O
mesmo acontece com as bananeiras. Dai a utilidade das barreiras de ventos.
Os
quebra-ventos devem ser alinhados perpendicularmente aos ventos dominantes da
região e não podem formar uma barreira muito fechada ou muito densa. Um bom
quebra-vento deve ser “permeável”, ou seja, parte do vento deve poder passar
entre as árvores.
Quebra-vento permeável.
Quebra-vento
sem adequada “permeabilidade” cria uma zona de redemoinho e turbulência, numa
faixa localizada imediatamente depois dela:
Quebra-vento sem adequada
permeabilidade.
Um
quebra-vento ideal é formado por algumas fileiras de árvores. Do lado que
recebe o vento dominante, uma primeira linha é plantada com arbustos ou árvores
de porte médio. A segunda e terceira linha será ocupada com árvores mais altas.
A última linha, do lado da área cultivada, é desejável o plantio de arbustos ou
árvores de porte médio para haver interferência nas culturas, principalmente
quando estas são de ciclo curto (anual ou bianual) e de porte baixo. As
espécies utilizadas devem ser espécies perenifólias (com folhagem
persistente o ano todo), eventualmente misturas com umas poucas árvores semidecíduas.
Para manter um grau adequado de permeabilidade do quebra-vento, é
necessário podar periodicamente as árvores das segundas e terceiras linhas,
eliminando os ramos na parte inferior dos troncos. Vejam, a seguir, os perfis
transversais de bons quebra-ventos:
Perfil transversal de quebra-vento com
4 fileiras.
Perfil transversal de quebra-vento com
5 fileiras.
A
largura ocupada pelo quebra-vento deve ser inferior a 15-20 metros. O
quebra-vento que recebe o primeiro impacto do vento dominante (quebra-vento
principal) deve ter uma largura de pelo menos 15 metros e possuir 5 fileiras.
Não há necessidade de exagerar a largura do quebra-vento. Uma boa barreira de
20 metros de largura pode ser tão eficiente em termos de proteção contra o
vento que uma faixa de floresta de 600 metros de largura.
Os
quebra-ventos secundários, localizados mais para dentro da área cultivada,
podem ser mais estreitos, por exemplo, com apenas 3 fileiras arborizadas e uma
largura de 6 a 8 metros. A distância (D) entre dois quebra-ventos deve ser
igual, no máximo, a 20 vezes a altura média das árvores de maior crescimento
vertical existente nela.
Quando,
além do vento dominante,
existem também os ventos secundários, capazes de afetar o rendimento da
agricultura ou da pecuária, convém estabelecer quebra-ventos adicionais, com
uma orientação apropriada, formando-se, neste caso, uma rede mais ou menos
quadriculada.
Quebra-vento em rede quadriculada.
As funções
de um bom quebra-vento.
Os quebra-ventos rápidos
Temos
de levar em consideração que as árvores plantadas para servirem de
quebra-ventos só cumprirão efetivamente esse papel depois de alguns anos. Por
vezes será necessário lançar mão de outras alternativas de curto prazo,
principalmente quando as condições do terreno não forem assim tão propícias.
Nesses casos, o plantio de feijão-boer, também chamado de feijão-guandu (Cajanus
cajan), adensado e em linha, poderá fornecer um quebra-vento muito
eficiente e o seu replantio a cada dois ou três anos, por exemplo, pode
auxiliar o campo até que o quebra-vento definitivo se estabeleça.
Uma
forma interessante de implantar quebra-ventos nas machambas da Agricultura
Natural é quando a configuramos no formato de mandalas. Nesses casos, o
feijão-guandu pode ser plantado ao logo de alguns dos anéis, dando um
espaçamento entre essas linhas de tal modo que sejam evitados os vórtices de ar
no interior da mandala. Esses quebra-ventos atingem sua maturidade em pouco
tempo, normalmente 1 ano, bem menos que no caso de quebra-ventos feitos com
árvores. E além do efeito do quebra-vento, o feijão-guandu também é uma importante
fonte de alimentação humana, dos animais de criação e uma excelente fonte de
material para produção de composto orgânico para o solo.
Quebra-ventos criados pelo plantio adensado de
feijão-boer (feijão-guandu), instaladas em uma das machambas do Pólo de
Agricultura Natural da Moamba.
Compostagem
O
composto orgânico, assim como toda a matéria orgânica, é um alimento da
microvida e, por isso, um condicionador do solo (PRIMAVESI, 2006). Por condicionamento de solo entendemos a sua
capacidade de produzir e manter grumos, tornando-o agregado e portanto
fisicamente apto a garantir um pleno desenvolvimento das plantas.
Existem
várias formas de produzir os compostos para serem usados na Agricultura
Natural. Também podem ser empregados vários materiais vegetais, bem como
resíduos de determinadas atividades agropecuárias. Este último ponto é um
assunto que ainda levanta muitas dúvidas e por isso mesmo vamos aprofundar nele
um pouco mais a frente.
Em
Moçambique, nosso composto natural muitas vezes não é mais do que folhas e
capins secos. Isso porque, em muitos casos, a disponibilidade de água,
inclusive para manter as composteiras úmidas, é muito precária. Dessa
forma, acabamos por incorporar ao solo materiais que ainda não foram degradados
por microrganismos do solo, o que também pode ser, do ponto de vista da
conservação de energia, muito interessante.
Numa
compostagem convencional, a mistura de resíduos vegetais, muitas vezes
acrescida de resíduos agroindustriais e mesmo agropecuários, sofre um processo
de decomposição aeróbica denominado fermentação. Para que este processo
microbiológico se desenvolva de forma eficiente, são necessários alguns
cuidados, como por exemplo, o constante revolvimento das leiras de composto
afim de garantir a entrada de ar nos interstícios da massa de materia orgânica.
Do contrário, ou seja, se não for fornecido oxigênio suficiente para esse
processo, a rota metabólica que será seguida pelos microorganismos será a da putrefação,
com a produção de diversas substâncias secundárias, muitas delas tóxicas, indesejáveis
para manter nossos solos saudáveis. O processo é exotérmico e isso quer dizer
que ele libera grandes quantidades de energia, principalmente na forma de
calor. Assim, o revolvimento das leiras também tem o efeito de manter as
temparaturas mais amenas, pois do contrário, os microrganismos aeróbicos
naturais acabam morrendo, dando lugar aos putrefadores.
Existem
vantagens de se incorporar materiais não decompostos no solo, principalmente em
termos de conservação da energia contida nesses restos de vegetais.
Começamos este capítulo justamente falando que o composto, na verdade, é
alimento para a microvida no solo. Portanto, desse ponto de vista, podemos
considerar que quanto mais rico ele for nutricionalmente, mas organismos ele
irá alimentar. Dessa forma, um número também maior de espécies desses
microrganismos acabará se fixando naturalmente no solo. Do mesmo modo
que já discutimos a importância de mantermos a biodiversidade dos nossos campos
agrícolas em termos de número de espécies de plantas diferentes, também no caso
dos microrganismos, além é claro dos representantes da mesofauna, essa
biodiversidade será fundamental para o bom desempenho do nosso trabalho com a
Agricultura Natural.
Por
vezes acontece de muitos agricultores tentarem inocular os seus solos
com suspensões de microrganismos tidos como benéficos, como os rizóbios. Tais
suspensões podem ser obtidas comercialmente ou até mesmo extraídas das
proximidades da área a ser cultivada como, por exemplo, da serrapilheira
(aquela camada de folhas decompostas nos solos de matas) de pequenas florestas
e capoeiras. Nossa experiência contudo, tem mostrado que se conseguirmos ficar
atentos a uma série de conceitos do trabalho natural com o solo, esse tipo de
intervenção, que para muitos pode até ser considerada uma espécie de
artificialização do sistema, ainda que em menor grau, torna-se completamente
desnecessária. Uma das consequêncas imediatas disso é a redução ainda maior dos
custos de produção, já que muitas vezes esse tipo de biotecnologia tem um preço
alto, principalmente para os padrões camponeses da maioria dos países
africanos.
A
manutenção da biodiversidade nos campos agrícolas, inclusive com a presença de
espécies espontâneas e nativas da região, poderá ser um meio muito eficaz de
instalar e manter a microbiota nativa daquele solo. Se esta microbiota
será aquela que promoverá a saúde do campo ou aquela que irá até fornecer
substâncias tóxicas ao solo e, consequentemente, às plantas, vai depender das
ações que forem promovidas pelos agricultores. O argumento muitas vezes usado
por fabricantes de produtos biotecnológicos é que seus produtos acabam por
resolver todos os problemas dos agricultores, mesmo que eles não tenham nem
noção da origem desses mesmos problemas. E esse talvez seja um dos grandes
perigos pois, com o tempo, a tendência é as pessoas irem pouco a pouco perdendo
a noção de conceitos fundamentais da natureza do solo e, a partir daí, criando
a dependência de tecnologias externas.
Recomendamos
vivamente a leitura do Capítulo 18 do Livro “Cartilha do Solo”, de autoria de
Ana Primavesi, que, na nossa opinião, descreve com extrema lucidez a questão
dos compostos na Agricultura Natural e também na agricultura orgânica. Vamos
aqui resumir um pouco o texto original, sem tentar perder sua excência.
Quando
falamos em composto nas regiões tropicais, temos de levar em consideração que
sua incorporação no solo não pode ser feito a mais de 30 ou 40 cm de
profundidade. Ao contrário, ele deve ficar na superfície do solo ou na camada
superficial e para que isso ocorra, a enxada rotativa pesada não serve para
realizar essa operação, razão pela qual recomendamos o uso de maquinarias
leves.
O
composto produzido com material da própria área pode não manter,
necessariamente, a saúde das culturas. Ele vai manter essa saúde se for feito a
partir das especies vegetais nativas da região. Do contrário, se for
obtido a partir de restos de materiais híbridos, oriundos de regiões de climas
completamente diferentes daquela onde se está trabalhando, como de outros
países e continentes, dificilmente conseguirão manter uma população saudável de
microrganismos nativos. Esse é um erro que muitos agricultores orgânicos e
naturais cometem mundo afora. Principalmente no
caso das hortícolas, os compostos produzidos a partir de seus resíduos
de produção costumam não trazer resultados satisfatórios, já que a maioria
delas são originárias de países de climas frios, e portanto, diferente das
condições existentes nas regiões tropicais.
Essa discussão reforça ainda mais a importância de se preservar as
espécies nativas da região nos nossos campos de Agricultura Natural, muitas
vezes nascendo de forma espontânea. O composto produzido a partir dessas
espécies terá um valor muito superior àquele eventalmente obtido a partir de plantas
“estrangeiras”.
Colônias naturais de microrganismos fixadores de
nitrogênio (rizóbios) em simbiose com espécies nativas da região do Pólo de
Agricultura Natural da Moamba.
Existem
muitos trabalhos que decrevem a produção de composto a partir de resíduos
industriais como cervejarias, fábricas de processamento de alimentos e até
resíduo orgânico oriundo do lixo urbano. Além desse tipo de material, também é
muito comum a referência do composto obtido a partir da cama-de-frango, ou outro
resíduo animal, misturada com resíduos da agricultura convencional, como no
caso de bagaço de cana. Evidentemente que em todos esses casos, não se pode
dizer que o composto obtido seja “químico”. Ele é sim “orgânico”, mas isso não
quer dizer que esteja limpo, ou seja, livre de substâncias tóxicas como
por exemplo os agrotóxicos e os metais pesados, presentes principalmente no
lixo urbano, ou ainda os antibióticos presentes nos resíduos de criação
convencional de animais.
Como
podemos ver, tão importante ou mais que usar composto, é saber a origem dos
materiais a partir dos quais ele será obtido. Sem saber exatamente essa origem,
muitos agricultores, ainda que bem intencionados, acabam contaminando seus
solos e dependendo do tipo de contaminação, poderá levar muitos anos até que
tais substâncias saiam do sistema.
Primavesi
também cita: “Acredita-se que o composto é a única fonte de nitrogênio, além
dos rizóbios das leguminosas. Isso não é correto e, geralmente, existe pouca
interrelação entre o nitrogênio fornecido pelo composto e o nitrogênio que se
encontra no solo. Qualquer material orgânico, inclusive a palha aplicada
superficialmente consegue fixar nitrogênio do ar durante a sua decomposição.
Portanto, o que importa não é tanto o material com que o composto é feito, mas
que a sua decomposição final no solo seja feita por bactérias aeróbicas capazes
de fixar nitrogênio.”
Muitos
também pensam que o nitrogênio proveniente dos compostos nunca causam
desequilíbrio ao solo, por serem “naturais”. Na verdade, não é bem assim que as
coisas funcionam. Se o composto for rico em nitrogênio, e isso normalmente
acontece quando introduzimos na sua formulação os resíduos das criações
camponesas de animais, pode acontecer de se verificar alguns problemas nas lavouras.
Inicialmente, as plantas que recebem esses compostos tendem a desenvolver
folhas grandes e vistosas que muitos acreditam ser devido a uma alimentação
excelente por parte das plantas. Mas o que de fato ocorre na maioria desses
casos é a deficiência de micronutrientes, no caso específico o cobre, induzida
pelo excesso de nitrogênio. A cosequência quase sempre é o aparecimento de
vários tipos de insetos sugadores que irão se aproveitar dos exsudatos metabólicos, em especial açúcares e
aminoácidos livres, verdadeiros banquetes para os pulgões, por exemplo. O
agricultor que não ficar atento a esses detalhes cai facilmente na armadilha de
passar os anos seguintes tentando encontrar “remédios naturais” para os
problemas de suas lavouras, ao invés de se fixarem na origem dos desequilíbrios
observados pelas diversas culturas. E aí também se tornam presas fáceis das
“empresas milagrosas” que tentam vender suas “facilidades biotecnológicas”. A
conclusão desse parágrafo deixamos para a imaginação de cada leitor.
Construindo as composterias na mandala
Normalmente para se obter o composto
usam-se leiras, que nada mais são que canteiros da mistura dos diversos
materiais utilizados, normalmente sobre o piso de terra batida ou ainda em cima
de pisos de betão. Em Moçambique usamos uma estratégia um pouco diferente, e
que vem sendo aprimorada ao longo dos anos.
Dentro
daquela lógica que apresentamos no final do capítulo anterior, quando
discutimos as machambas em formato de mandalas, também no que diz respeito às
nossas composteiras seguimos um caminho semelhante. O interessante é que
o resultado que apresentaremos a seguir foi conseguido a partir do
desenvolvimento do conceito da mandala feito pelos nossos próprios
funcionários de campo. No início das nossas atividades escolhíamos algumas
árvores no nosso terreno e em volta delas cavávamos uma espécie de canteiro com
60 a 80 cm de profundidade. Claro que isso era muito facilitado pelo tipo de
solo arenoso da nossa região, mas o fato é que dispunhamos normalmente de três
ou quatro anéis concêntricos, dentros dos quais armazenávamos alguns dos poucos
resíduos de nossa produção agrícola e uma quantidade grande de folhas secas das
árvores, principalmente cajueiros, mangueiras, mafureiras, massaleras e canhueiros, além de várias espécies de capins,
oriundos das capinas. Ao construir essas leiras sob a copa das árvores, o
objetivo é tentar manter o material o mais refrescado possível, além da sombra
ajudar na manutenção da umidade.
Composteira sob a copa de um cajueiro, na
Machamba Modelo da Agricultura Natural em Marracuene.
Porém,
como logo ficou evidente, era muito mais proveitoso, e energéticamente mais
econômico, construir as composteiras dentro das mandalas. Para isso,
escolhemos alguns seguimentos de canteiros e reproduzimos o trabalho descrito
no parágrafo anterior. A diferença é que fazendo dessa forma, economizamos
muita energia no transporte do composto para os canteiros. Além disso, a
própria decomposição do material, com o passar do tempo, vai enriquecendo o
solo do que futuramente passa a ser canteiro cultivado. Hoje, esse é o nosso
padrão de composteiras, quando delas necessitamos.
Composteira no interior da mandala da
Agricultura Natural na comunidade de Santa Isabel, Marracuene.
Nenhum comentário:
Postar um comentário