(Módulo 5 do Livro do Curso de Agricultura Natural)
Introdução
Vamos iniciar esse nosso módulo sobre alimentação natural citando um dos Ensinamentos de Mokiti Okada:
"(...) Dessa maneira, alimentos que contêm energia vital, não são apenas isentos de aditivos, sendo, por isso, seguros. Mas, também, proporcionam àqueles que os consomem uma maior energia vital. Os cereais e as hortaliças [hortícolas] que são cultivados pelo método da Agricultura Natural, mesmo guardados, conservam-se melhor do que os cultivados pela agricultura convencional. O motivo é que eles não possuem as toxinas dos adubos e a sua energia vital é mais forte.
Além dessas condições, para ser considerado alimento que contém energia vital, o princípio básico “o homem e a terra são inseparáveis” deve ser vivificado.
Está de acordo com as Leis da Natureza o homem alimentar-se de produtos da safra e da terra em que nasceu e cresceu.
Apesar de existir alguma diferença, dependendo do clima e das características da região, todos os alimentos são produzidos de maneira adequada às pessoas aí nascidas."
Extraído do livro: Colectânea Agricultura e Alimentação Natural. Africarte, 2012.
A alimentação de grande parte da nossa sociedade contemporânea está baseada em pouco mais de algumas dezenas de alimentos diferentes. Já mencionamos anteriormente que há cerca de 100 anos a humanidade conhecia e cultivava aproximadamente 10.000 espécies diferentes de plantas comestíveis. Hoje, segundo dados da FAO, esse número não chega a 200 espécies. Pior, destas quase 200 cerca de 30 plantas são responsáveis por 95% do gasto de energia necessária para a produção agrícola, ou falando de outra maneira, essas 30 plantas são as responsáveis por 95% de tudo o que se produz no mundo em termos de alimentos humanos e não-humanos, incluindo nessa ultima categoria, além dos animais, os veículos automotores que funcionam com combustíveis "verdes".
Numa aula que demos para um grupo de estudantes, pedimos para que todos eles relacionassem quais os alimentos que haviam consumido nos últimos três dias. Por exemplo, se alguém tivesse comido macarrão então devia reportar trigo; se comeu frango, então devia reportar milho e soja, já que esses dois cereais são a base da alimentação das aves, e assim por diante. O resultado desse pequeno exercício serviu para mostrar o quanto estamos dependentes de poucas dezenas de alimentos, pois ao final da aula, quando tabulamos todos os resultados, o número de alimentos diferentes dentre todos do grupo não chegou a 30! Faça o estudante mesmo esse exercício e reporte quais os alimentos que comeu na ultima semana. Temos certeza que, na média, a maioria de nós está "confinada" a um grupo pequeno de alimentos. E não é por acaso que a maioria absoluta desses alimentos são justamente aqueles nos quais a indústria alimentícia e agrícola investe bilhões de dólares todos os anos em pesquisas, principalmente nas chamadas tecnologias de ponta como a dos alimentos transgênicos.
Na contramão dessa tendência, existem ainda verdadeiros tesouros quase escondidos, muitas vezes, nos nossos próprios quintais e machambas. Muitos dos "matos" que nascem espontaneamente entre os canteiros de nossas culturas modernas ou naqueles espaços que deixamos de trabalhar por algum tempo, são na verdade alimentos riquíssimos em vitaminas e diversos nutrientes. A sua presença espontânea já indica uma forte aptidão, alcançada após milhões de anos de evolução natural, em retirar de determinado tipo de solo a força necessária para o seu desenvolvimento. Essas culturas recebem, muitas vezes, a denominação de plantas alimentícias não-convencionais (PANC) ou ainda culturas órfãs, pois vêem sendo esquecidas, propositalmente ou não, ao longo dos anos. A grande maioria dessas culturas não faz parte de programas de pesquisa e desenvolvimento agrícola, apesar de se reconhecerem, baseados em dados da literatura científica, seus diversos benefícios e facilidades de cultivo. Pior ainda, muitas dessas culturas órfãs estão a ser extintas e dentro de pouco tempo só serão encontradas referências delas nos livros de história.
Já mencionamos também que nossa sociedade moderna é refém de uma cultura midiática, baseada em elaborados programas de propaganda e marketing. Pergunte a uma pessoa qualquer qual a primeira imagem que lhe vem a cabeça quando você diz a palavra "salada" e perceberá que quase sempre na resposta vão estar relacionadas as folhas de alface, o tomate e a cebola, com algumas poucas variações de outros ingredientes complementares. Isso não é por acaso pois a televisão nos bombardeia diariamente com esse tipo de informação e até nos livros didáticos da escola encontraremos essas referências.
Poucas pessoas sabem, por exemplo, que as folhas da batata-doce cruas dão excelentes saladas e que estas podem ser incrementadas com um grande número de outras folhas e raízes. Os próprios tomates tradicionais, grandes e vistosos, podem ser substituídos por seus parentes ancestrais, aqueles tomatinhos que nascem facilmente no quintal e demandam muitos poucos tratos culturais. As folhas de alface podem ser substituídas por folhas de vinagreira, uma planta de origem africana e adaptada aos rigores do clima árido e que nos fornece folhas saborosas e extremamente nutritivas. No geral, as plantas locais, por estarem melhor adaptadas, impõem muito menos pressão ao meio ambiente para serem produzidas e isso inclui consumirem menos água, poderem ser cultivadas em solos relativamente pobres em nutrientes, agüentarem os rigores do inverno ou do verão, etc.
A força natural dos alimentos locais
No século XVI os espanhóis chegaram ao que hoje conhecemos como Vale dos Incas, no Peru. Em busca do ouro, eles se depararam com uma sociedade bem organizada e desenvolvida e que tinha na agricultura a base de seu desenvolvimento. Os incas eram capazes de prover o sustento de sua sociedade cultivando cereais como diversas variedades de milho, legumes como os tomates e tubérculos como as batatas. Todas essas plantas têm sua origem na região andina e rapidamente foram levadas, inicialmente pelos conquistadores espanhóis, a várias partes do mundo. Consta que quando os espanhóis tiveram os primeiros contatos com os povos incas, estes tinham batatas armazenadas para até 15 anos, pois usavam uma técnica, que ainda hoje é conhecida por algumas daquelas comunidades remanescentes, que permitia a conservação daquele tubérculo desidratado por longos períodos de tempo. Porém, além das batatas, tomates e grãos de milhos, os incas também cultivavam outros tipos de plantas como os amarantos e a quinoa. Estas plantas, diferentes das outras que citamos anteriormente, tinham um desenvolvimento espontâneo e eram, muito provavelmente, de facílimo cultivo. Não precisou de muito tempo para os conquistadores espanhóis perceberem que esses alimentos fáceis de serem cultivados eram muito ricos nutricionalmente e deles vinham boa parte das forças dos guerreiros incas, e ainda que essa força dificultava muito a conquista e dominação daquele território. Ao longo das primeiras décadas após o contatos iniciais com os incas, os espanhóis levaram a cabo um verdadeiro processo de dizimação dos campos de amarantos e quinoa pois sabiam que guerreiros bem alimentos tendiam a ser mais fortes fisicamente e tinham mais facilidade de raciocínio. Essa história foi desenterrada há pouco mais de 30 anos quando um professor peruano, o Dr. Luis Sumar Kalinowisk, pesquisando o valor dos alimentos antigos, redescobriu a quinoa e o amaranto. Desde então, esses dois alimentos ganharam enorme exposição nos meios de comunicação e hoje em dia são considerados verdadeiros superalimentos.
O que pouca gente sabe no entanto é que o amaranto, esse alimento que vem ganhando fãs no mundo todo, faz parte de uma família de plantas cosmopolitas e que nascem praticamente sozinhos em qualquer espaço de chão. Até mesmo nas sarjetas e frestas de muros é possível encontrar plantas dessa família que em muitas regiões recebem nomes específicos. Em Moçambique, por exemplo, são conhecidos como tsec, em Angola como jimboa, no Brasil caruru e assim por diante. Infelizmente, também não é difícil encontrar referências a essas plantas nos manuais agrícolas convencionais como pragas e ervas invasoras, a despeito de suas excepcionais qualidades nutricionais.
E há ainda um outro ponto interessante. Percebemos que em Maputo a simples referencia pública ao consumo de tsec remete a uma espécie de preconceito pois muitos consideram que pessoas que comem esse tipo de alimento não possuem condições mais dignas de sobrevivência. Ou seja, por nascerem em qualquer lugar acabam sendo extremamente baratas e fazem parte da dieta das populações mais vulneráveis economicamente. Pelo menos em tese... O que descobrimos, com o tempo, é que na verdade muitas famílias chegam a "exportar" folhas de tsec para seus parentes que vivem no exterior, inclusive na Europa. Esse alimento, além de nutritivo, é muito saboroso e faz parte de uma espécie de culinária tradicional. No entanto, muitas vezes por tabu, como já nos foi relatado, o seu consumo se dá de forma bem discreta, principalmente pelas famílias mais abastadas.
Assim como o amaranto, diversas outras plantas vêem sendo redescobertas nos últimos anos e felizmente já existem movimentos organizados em vários países cujo objetivo é o resgate de hábitos alimentares ancestrais e a preservação desse precioso recurso genético que são os alimentos locais e tradicionais. Do ponto de vista da Agricultura Natural e tendo por base os Ensinamentos deixados por Mokiti Okada, fica evidente que a valorização desse tipo de alimento está condizente com a filosofia de trabalho proposta por uma forma mais natural de cultivar o solo. E é fácil perceber isso quando lembramos, por exemplo, de uma discussão anterior nesse curso, na facilidade com que plantas típicas das regiões tropicais têm em se desenvolver mais quando comparadas às plantas oriundas de climas mais frios. Isso tem a ver com a melhor aptidão ao tipo de clima, regime de chuvas e qualidade do solo. Quando tentamos cultivar plantas oriundas de ecossistemas tipicamente diferentes daqueles em que estamos tentando trabalhar, devemos ter em mente que nossos sistemas tenderão a um aumento da sua artificialidade. Esse aumento da artificialidade não será necessariamente negativo mas implicará, quase sempre, em maiores demandas de recursos naturais.
Por esse raciocínio, portanto, quanto mais adaptada uma planta estiver a um determinado ecossistema mais facilmente ela poderá ser cultivada e mais natural tenderá a ser esse cultivo. Também precisamos levar em consideração o fato de que para se desenvolverem em seus ambientes originais, a maioria das plantas desenvolveram mecanismos de sobrevivência que nos poderão ser muito úteis. Existe um conceito repassado de geração a geração entre os remanescentes dos povos incas na América do Sul que ensina que quanto mais difíceis forem as condições de desenvolvimento de uma planta, mais energia vital terá os seus frutos. O raciocínio é bem lógico, pois mostra que toda a estratégia de desenvolvimento das plantas locais se dá no sentido de acumular o máximo de energia do seu ecossistema. Transportando esse raciocínio para a Agricultura Natural, fica fácil perceber o valor estratégico de prestigiar o cultivo e o consumo dos alimentos que naturalmente nascem, crescem e se desenvolvem numa determinada região.
"O homem e a terra são inseparáveis"
Em África, e em particular Moçambique, essa relação homem-terra é bem evidente. Por exemplo, niamunda é uma expressão que retrata bem o espírito de manter as pessoas conectadas à terra através de suas machambas. Numa tentativa de tradução poderíamos dizer que o termo significa vamos à machamba e essa expressão é usada até mesmo como nome de escolas primárias, o que demonstra como a terra está ligada ao dia a dia das pessoas desde a mais tenra idade no país.
Por toda a África podemos encontrar referências da ligação do ser humano com a terra e esse elo parece nunca ter se rompido. De fato, é cada vez mais notória a sensação de que os camponeses, principalmente os africanos, estão ganhando mais consciência de seu papel social e principalmente ambiental e a preservação de hábitos culinários ancestrais vem de encontro aos anseios de milhares de agricultores espalhados pelo continente e também ao redor do mundo, ávidos por verem valorizados os seus esforços de trabalho com a terra. Por outro lado, sempre nos perguntamos como seria possível praticar uma agricultura concorde com as Leis da Natureza usando o raciocínio convencional de produção industrial de alimentos. A grande questão que vem à tona é o fato de que para atender a esse tipo de sistema de produção somos forçados cada vez mais a artificializar os nossos campos, a despeito dos nossos próprios sentimentos naturalistas.
Falando de outro modo, quando passamos a valorizar o alimento local, estamos de certa forma valorizando também a própria Natureza em sua totalidade global, dentro do princípio de agir localmente pensando globalmente. Recentemente demos um exemplo prático numa de nossas machambas a um grupo de visitantes. Naquele local semeamos uma espécies de rúcula silvestre que dá uma florada muito bonita e persistente. Além da rúcula, deixamos crescer algumas outras ervas que também dão flores silvestres muito apreciadas pelas abelhas e diversos outros insetos. Tivemos a oportunidade de mostrar ao grupo que favorecendo a Natureza, plantando e cultivando espécies locais e deixando que as plantas espontâneas se desenvolvam, recebíamos em troca a polinização eficiente de nossos canteiros de tomate. Como temos sempre a biodiversidade favorecida em nossas machambas e ainda valorizamos muitas das espécies de plantas locais, a Natureza acaba nos retribuindo com o desenvolvimento otimizado de algumas culturas "estrangeiras" como são os nossos tomates em Moçambique. Com os morangos acontece a mesma coisa nos nossos campos e a lista segue com as alfaces, batatas, ervas aromáticas e muito mais.
Não estamos pregando, no âmbito da prática da Agricultura Natural, o fim do cultivo de espécies agrícolas que não sejam originais de um determinado lugar. O que estamos a incentivar é a valorização daquilo que nasce naturalmente em cada região. Do ponto de vista natural, o cultivo de plantas que se adaptam melhor numa região irá favorecer todo o sistema, pois, como já dissemos, necessitarão de bem menos recursos naturais e artificialidades do manejo agrícola. Essa facilidade de cultivo, na nossa opinião, pode e deve ser usada como estratégia na produção de alimentos verdadeiramente saudáveis e ricos nutricionalmente. Vivificando a relação com os frutos naturais da terra, respeitando suas origens e ciclos de desenvolvimento, também estaremos vivificando a própria terra da qual nossas comunidades fazem parte. Esse princípio, ensinado por Mokiti Okada, certamente garantirá a força vital dos alimentos necessária para nutrir não apenas nossos corpos mas também nosso espírito, criando um verdadeiro ciclo virtuoso. Quanto mais valorizarmos nossos alimentos ancestrais e locais, mais nutritiva será nossa comida e mais fortes e saudáveis serão as pessoas. Quanto mais fortes e saudáveis, mais inteligentes serão e mais rapidamente perceberão as vantagens de trabalhar em conjunto com a Natureza e não conta ela.
Alimentos tradicionais ou não-convencionais
Na mesma linha de raciocínio usada para descrever os alimentos locais, também temos os chamados alimentos tradicionais. Muitas frutas, legumes e hortícolas se enquadram nessa categoria e de uma forma geral consideramos como tradicional todo o alimento, de origem local ou não, que exerce influência na alimentação de uma população tradicional. E também como no caso dos alimentos locais, normalmente não estão organizados enquanto cadeira produtiva propriamente dita, não despertando o interesse por parte de empreses de sementes, fertilizantes ou agroquímicos.
Contudo, o resgate e a valorização das variedades tradicionais de alimentos, em especial as hortícolas, representam ganhos importantes do ponto de vista cultural, econômico, social e nutricional. Em muitas regiões do mundo, o cultivo desses alimentos é feito na sua grande parte por populações tradicionais (agricultores camponeses) que preservam o conhecimento acerca de seu cultivo e consumo, passando-o de geração a geração.
Os alimentos tradicionais podem ou não ser edáficos, ou seja, podem ou não ter origem local. Muitas vezes por sua capacidade intrínseca de adaptação aos mais variados climas e tipos de solo, muitos desses alimentos foram sendo distribuídos geograficamente e ao longo de gerações acabaram sendo incorporados à cultura de determinados locais.
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