quinta-feira, 14 de maio de 2015

CURSO DE AGRICULTURA NATURAL E GESTÃO AMBIENTAL - 2015: AULA 10

NOÇÕES DE ECOLOGIA E MEIO-AMBIENTE

Ecologia, no sentido clássico, é a ciência que estuda as interações entre os organismos e seu ambiente, ou seja, é o estudo científico da distribuição e abundância dos seres vivos e das interações que determinam a sua distribuição. As interações podem ser entre seres vivos e/ou com o meio ambiente, e a compreensão desse ponto será fundamental para compreendermos os mecanismos envolvidos num manejo agroecológico do solo, típico do trabalho com a Agricultura Natural.
A palavra ecologia tem origem no grego “oikos”, que significa casa, e “logos”, que significa estudo. Logo, por extensão seria o estudo da casa, ou, de forma genérica, o lugar onde se vive.
Na compreensão de seu primeiro formulador, Ernst Haeckel (1834-1919), discípulo de Darwin, a ecologia é o estudo do inter-relacionamento que todos os sistemas vivos e não vivos têm entre si e com o seu respectivo meio ambiente. Não se trata de estudar o meio ambiente ou os seres bióticos (vivos) ou abióticos (inertes) em si mesmos, mas a interação e a interdependência entre eles. Isso é o que forma o meio ambiente, expressão cunhada em 1800 pelo dinamarquês Jens Baggesen (1764-1826) e introduzida no discurso biológico por Jakob von Uexkull (1864-1944).
Na visão apresentada por Leonardo Boff, o que se visa não é o meio ambiente mas o ambiente inteiro. Um ser vivo não pode ser visto isoladamente como um mero representante de sua espécie, mas deve ser visto e analisado sempre dentro de seu ecossistema, em relação ao conjunto das condições vitais que o constituem e no equilíbrio com todos os demais representantes da comunidade dos viventes.
Por essa ótica, podemos considerar a ecologia como um saber das relações, interconexões, interdependências e intercâmbios de tudo com tudo em todos os momentos. Nessa perspectiva, a ecologia não pode ser definida em si mesma, como normalmente o fazem os estudos tradicionais sobre o assunto, ou seja, fora de suas implicações com outros saberes. Ela não é um saber de objetos de conhecimento, mas um saber de relações entre os vários objetos de conhecimento. Ela é um saber de saberes, relacionados entre si.
Quando nos propomos a praticar uma agricultura concorde com as leis naturais, como é o caso da Agricultura Natural, implicitamente estamos dizendo que precisamos estar atentos à ecologia, na sua mais profunda e máxima expressão. Para tanto, será muito interessante que consigamos ultrapassar o conceito convencional de ecologia como meramente uma técnica de gerenciamento de recursos escassos. Nas últimas décadas, muitos pensadores e cientistas, voltados para uma expressão mais humanizada da própria ciência, têm desenvolvido várias vertentes da ecologia. Passemos a citar, a título de exemplo, algumas dessas vertentes.


Ecologia ambiental: a comunidade da vida

Podemos partir da seguinte constatação: todos moramos juntos na Casa Comum, que é o nosso planeta Terra. E quando falamos de todos, não nos referimos apenas aos seres humanos, mas também a todo o conjunto de seres, bióticos e abióticos. Isso quer dizer que todos dependemos, a uma dada escala, do mesmo ambiente inteiro. Isso leva-nos à conclusão de que tudo está conectado.
Numa machamba da Agricultura Natural procuramos promover o cultivo simultâneo de dezenas de espécies vegetais, incluindo ai não só as culturas alimentícias, mas também as espécies nativas (ervas espontâneas), florestais (árvores frutíferas, madeireiras e de sombra), e também de flores. O resultado é um verdadeiro jardim produtivo, onde cada elemento possui intrincadas relações com os outros e com toda a machamba. Além disso, sempre procuramos criar as condições ideais para que a fauna, além da micro e mesofauna, possa se estabelecer no local, potencializando ainda mais as trocas e as conexões de todo o sistema.
Para entendermos a importância da ecologia ambiental, tal como a exemplificamos acima com a nossa machamba, precisamos em primeiro lugar superar a visão reducionista de meio ambiente e, em segundo lugar, ganharmos um olhar mais integrador do planeta Terra, que é formado por muitos tipos de meio ambientes, também chamados de ecossistemas ou biomas, ou ainda a comunidade de vida.
Meio ambiente não é algo que está fora de nós e que não nos diz respeito diretamente. Nós pertencemos ao meio ambiente, pois nos alimentamos com os produtos da natureza, respiramos ar, bebemos água, que constitui grande parte de nosso organismo, etc. Basta ocorrer uma mudança de clima ou haver excesso de poluentes no ar ou pesticidas nos alimentos para sentir-nos afetados em nossa saúde. Estamos dentro do meio ambiente e formamos com os demais seres a comunidade terrena ou o ambiente inteiro.


Ecologia política e social: modo de vida sustentável

Os seres humanos e também as distintas sociedades são momentos do imenso processo evolutivo e devem ser incluídas no todo maior. Por si mesma, a natureza nunca iria construir artefatos tecnológicos. Mas o faz por meio do ser humano que é parte e parcela de sua realidade. Por isso devem ser considerados no conceito de natureza criadora, pois seus materiais foram retirados das virtualidades da natureza (BOFF, 2010).
Esse tipo de ecologia analisa as formas como cada sociedade se relaciona com a natureza, como utiliza os recursos e serviços naturais, como é o seu modo de produção e seus padrões de consumo, sob que forma os cidadãos participam ou não dos benefícios naturais e culturais, como trata os resíduos, que faz para dar descanso à Terra e como garante a regeneração dos recursos escassos para assegurar o futuro para si e para as gerações que virão depois da nossa.
Constatamos que há muitos tipos de sociedade, com suas instituições e normas que organizam de forma diferente os relacionamentos com a natureza. Em algumas, especialmente os povos originários, os indígenas, vigora uma profunda comunhão com a natureza e um cuidado natural para com os ecossistemas. Disso resulta uma grande harmonia entre ser humano e meio ambiente. Há outras que quebram essa harmonia. Em geral, por onde passa, o homem, principalmente o moderno, deixa um rastro de irresponsabilidade e falta de cuidado.


Ecologia mental: novas mentes e novos corações

Tão importante quanto a ecologia ambiental, social e política é a ecologia mental. Ela se ocupa da mente e do que ocorre dentro dela. Também considera o tipo de imaginário existente, os valores e as visões de mundo que as sociedades projetaram. Muito de nossa agressividade para com o sistema-Terra, o mau uso dos recursos naturais e o descuido com os resíduos têm sua origem nos conceitos e preconceitos incrustados na mente humana e consagrados no imaginário social e que são difíceis de desmontar.
Dentre as várias vertentes da ecologia, talvez a ecologia mental seja a mais difícil de ser realizada porque as estruturas mentais e o nosso modo convencional de ver as coisas perduram por gerações, dificultando enormemente as mudanças necessárias. É conhecida a frase de Einstein: é mais fácil desintegrar um átomo do que desmontar um preconceito.
Verificamos duas características principais de nosso tempo. A primeira é a crescente consciência de que podemos estar rumo a destruição da Terra e ao desaparecimento da espécie humana. E a segunda é o surgimento de um vigoroso despertar de um relacionamento benevolente para com a Terra, para com os ecossistemas e para com os demais seres humanos, como forma de salvar nossa Casa Comum e garantir a nossa sobrevivência.
Para isso se exige, segundo a Carta da Terra, uma mudança na mente e no coração, no sentido de um novo sentimento de interdependência global e de responsabilidade universal. Ao mudarmos nossa mente e nosso coração, estamos criando as bases para a construção de uma sociedade humana na qual o uso racional dos recursos, o cuidado com os resíduos e a preservação do meio ambiente estejam em sintonia fina num equilíbrio saudável com a consciência coletiva da população.


Ecologia integral: pertencemos ao universo

A ecologia integral procura ir além da ecologia ambiental, sociopolítica e mental. Ela se dá conta de que a Terra não é tudo. Ela está inserida e é parte de um grandioso processo evolutivo que começou a 13,7 bilhões de anos atrás quando ocorreu aquela incomensurável explosão chamada de Big Bang. Por um momento, estávamos todos juntos lá naquele ponto ínfimo em tamanho, mas cheio de energia e interações.
Com a explosão começou o processo de expansão/evolução/criação. Todos os seres do universo são feitos com os mesmos “tijolinhos”, forjados nas estrelas ancestrais que desapareceram, com os quais nós também somos construídos. Constituímos, pois, uma imensa comunidade cósmica.

A ecologia integral procura entender a Terra, as energias cósmicas que nos alimentam e sustentam dentro do imenso processo de evolução que ainda está em curso.



PRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO E AMBIENTE

O desenvolvimento também pode ser definido como o melhoramento da qualidade de vida do homem. Isso é muito importante, quando se considera a condição atual de pobreza e miséria de muitas comunidades e países. Para alcançar o desenvolvimento, é necessário produzir os alimentos e a matéria-prima para satisfazer as necessidades básicas do homem. Geralmente, os Ambientes ou Sistemas Naturais, também chamados Ecossistemas Naturais, produzem mais do que aqueles criados pelo homem. Entretanto, o que eles produzem nem sempre é diretamente útil para as necessidades humanas, razão pela qual se faz necessária a intervenção humana no ambiente, modificando certos aspectos e aproveitando ao máximo os Recursos Naturais existentes, sempre de forma sustentável.

Em geral há duas formas de fazê-lo. Uma delas consiste em alcançar um Desenvolvimento dependente do Ambiente. Isso significa estudar o lugar onde se vão cultivar alimentos ou matéria-prima, e, sem modificar as características mais importantes desse ecossistema – já que o ambiente tem uma capacidade limitada de suportar mudanças - realizar somente atividades que ali sejam possíveis. Dessa forma, a alteração será mínima e os impactos ambientais serão facilmente controláveis. Nesse caso, dir-se-á que a artificialização será mínima, ao passo que a conservação do ambiente e dos recursos naturais será máxima.

A outra forma é fazer um ambiente dependente do desenvolvimento, isto é, determinar o que se deseja produzir e logo modificar o ambiente, com grandes mudanças, transformando-o em outro muito artificial, eliminando grande parte de suas características naturais. Nesse caso, a modificação ou artificialização será máxima e a conservação das características naturais será mínima. Dessa forma, corre-se o risco de se produzir severos impactos ambientais negativos. Muitos empreendimentos industriais, agrícolas e sistemas de irrigação produzem danos decorrentes da forte artificialização que imprimem. Isso deve ser previsto com técnicas eficientes, as quais podem ser simples, às vezes. Podemos dar como exemplo um bom manejo da água de irrigação e do solo, evitando que o mesmo sofra erosão.

O que é um impacto ambiental?

Ainda que os recursos naturais de um lugar nos pertençam, o uso que deles podemos fazer deve obedecer a certas condições, pois, se utilizarmos técnicas equivocadas, a água, o solo, a vegetação e a fauna serão destruídos, degradados e produzirão menos, causando fome, miséria e uma vida de possibilidades limitadas e de má qualidade. Por isso, um pensamento sábio diz que os recursos naturais e o ambiente não nos pertencem, mas, apenas, nós os pedimos emprestados aos nossos filhos e netos. Nós somos os responsáveis pela qualidade de vida das gerações futuras! Todos nós.

O homem, ao utilizar os recursos naturais e o ambiente, com freqüência o faz de forma errada, danifica e destrói sem benefício algum. Esse dano pode ser produzido rapidamente ou de forma lenta, muitas vezes sem que o homem disso se dê conta. Às vezes é irrecuperável; em outros casos, com uma medida positiva, é possível corrigi-lo e recuperar parte ou a totalidade do ambiente que foi danificado. O homem tem o dever de fazer bom uso dos recursos naturais, o que lhe permitirá aproveitá-los de forma permanente. Para isso, deve utilizar responsavelmente métodos e práticas bem pensados, que tenham bons fundamentos, que se justifiquem técnica e racionalmente. Isso permitiria alcançar um desenvolvimento duradouro, isto é, sustentável, obtendo o melhor benefício possível do ambiente, aplicando preferencialmente as técnicas que determinam impactos positivos e minimizam os negativos. Entre os impactos negativos, é possível indicar:

·      a contaminação das águas com agrotóxicos e do ar com gases venenosos;
·      a poluição das águas dos rios com terra proveniente da erosão;
·      a eliminação desnecessária das florestas.
Entre os positivos, poder-se-iam indicar:
·      o reflorestamento;
·      a aplicação de técnicas para controlar a erosão;
·      a criação de espécies da fauna, para evitar a sua extinção;
·      a prática da Agricultura Natural;
·      outras ações que permitam melhorar as características ambientais.


Como se reconhecem os impactos ambientais negativos

Águas de rios contaminadas e carregadas de terra, peixes mortos, fumaça na atmosfera, terras erodidas e cada vez menos produtivas, aves mortas e diminuição da fauna, córregos com menos água, solos queimados e sem cobertura verde e muitas outras situações parecidas são o reflexo e a conseqüência de impactos ambientais negativos produzidos pelo homem.

Para reconhecer os impactos ambientais, é necessária, além do conhecimento do técnico, a experiência fundamental do agricultor e do natural da região, os quais têm grande conhecimento do lugar onde vivem e, portanto, estão capacitados para distinguir, detectar e identificar as mudanças aí produzidas, podendo prever a seca e outros fenômenos, por meio de sinais indicados pela natureza e que eles podem reconhecer. Lamentavelmente, algumas vezes eles não têm consciência das suas próprias observações, nem capacidade de compreender o que pode ocorrer com os recursos naturais. Geralmente, a mudança é observada mas não relacionada com as atividades humanas. Mas, quando se tem prática nesse tipo de observações, é possível ver e até predizer os impactos que podem ocorrer, bem como suas conseqüências, permitindo, assim, aplicar oportunamente as técnicas que sejam necessárias. Isso é muito importante, pois somente identificando-os, descobrindo suas causas e meditando sobre elas, é possível encontrar as soluções para corrigi-los.

Uma das formas de alcançar um equilíbrio entre a população de um determinado lugar e os recursos naturais que aí existem consiste em preservar o potencial de produção desses recursos. A outra forma consiste em ajustar a população à disponibilidade de recursos. Assim, poder-se-ão satisfazer as necessidades do homem de forma estável, permanente e duradoura, o que facilita um verdadeiro desenvolvimento, isto é, a melhoria da qualidade de vida do homem. Isso não é possível quando se degrada o Ambiente mediante impactos negativos decorrentes da aplicação de um critério equivocado, no uso da água e da terra, por exemplo. O descontrole, tanto na degradação ambiental quanto na superpopulação, pode favorecer a ocorrência de novos impactos ambientais negativos.


O que é uma cadeia de impactos ambientais negativos

Quando ocorre um dano aos Recursos Naturais e ao Ambiente, produz-se uma nova situação, a qual, por sua vez, pode gerar outro dano, sendo possível que este último cause outro dano mais. Dessa forma, um impacto pode ser o início de uma sequência ou cadeia de vários impactos negativos sucessivos. Também se pode distinguir uma direção dessa cadeia, que se inicia com aquele que desencadeou a sequência e chega ao último que foi produzido. Essas situações podem ocorrer no meio ambiente natural (ecossistemas naturais), ou no meio ambiente social (vilas, bairros, casas, escolas, etc.). A sequência de impactos pode passar do meio ambiente social ao natural e vice-versa.

Um exemplo de cadeia de impactos ambientais negativos “desencadeada” pelo homem pode ser o seguinte: desmatar uma encosta de forma descontrolada (1º impacto); logo, fazer uma agricultura sem técnicas apropriadas, favorecendo a erosão (2º impacto); empobrecer, assim, o potencial de produção dessas terras (3º impacto); que as águas das chuvas, ao escorrer, arrastem terra para os rios, afetando a qualidade das águas (4º impacto); diminuir, dessa forma, a penetração de luz solar no rio, devido à turbidez das águas (5º impacto); alterar a composição química das águas do rio (6º impacto); afetar o lugar onde vivem os peixes, plantas e pequenos organismos aquáticos (7º impacto); afetar o sistema respiratório e a nutrição dos peixes (8º impacto); diminuir a pesca e, consequentemente, a alimentação do próprio homem, sua nutrição e sua economia (9º impacto).

Para corrigir as cadeias de impactos ambientais, é necessário saber onde esta se inicia. Resolvendo esse impacto, controlam-se mais facilmente os seguintes. Muitas vezes, realizam-se ações para corrigir um impacto sem saber que esse é produzido por outro; assim, o efeito da correção passa a ser sua verdadeira causa.


Quem são os responsáveis pelos impactos ambientais negativos

Muitas vezes, as pessoas destroem, degradam e geram impactos negativos por ignorância. Nesse caso, é fundamental ajudá-las para que se preparem e tomem consciência de que podem utilizar o Ambiente e os Recursos Naturais de forma melhor. Outras vezes, é a necessidade e a miséria que levam as pessoas a degradar. É nosso dever ajudar para que se apliquem técnicas simples, de custo muito baixo, permitindo-lhes subsistir e evitando que fique cada dia mais pobres. Lamentavelmente, existem pessoas e empresas que atuam de má fé, com propósito ilícito de enriquecimento e que, sabendo o dano que provocam, produzem severos impactos negativos no ambiente, com lucro para elas e prejuízo para a comunidade, situação esta que requer a aplicação rigorosa das leis.

É uma responsabilidade social ter consciência de quando se produzem esses danos, para evitá-los e corrigi-los oportunamente, mediante ações que produzam impactos positivos, recuperando, assim, ecossistemas degradados e aumentando as possibilidades de produção e bem viver.

Pelo exposto, entende-se que o principal responsável por uma cadeia de impactos é quem realizou a primeira ação da sequencia. Há casos em que é difícil determiná-lo, especialmente se o impacto ocorreu há algum tempo. Também é possível que o dano seja tão grande que quem o causou não tenha a capacidade de corrigi-lo, ou que a responsabilidade seja de várias pessoas ou empresas. Todas essas situações têm soluções técnicas e legais distintas. Em alguns casos, o dano se estende à bacia hidrográfica inteira e a solução necessária é mais ampla ainda, já que o efeito pode prejudicar toda a comunidade. Em vista disso, o interesse e a obrigação de corrigir esse tipo de problemas e o direito de conhecê-los, de discuti-los, de contribuir com soluções e de participar das ações que sejam necessárias devem ser de todos. Deve-se recordar que, do ponto de vista da proteção ambiental, é tão responsável quem produz o impacto como quem permite que essa ação se realize. 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

CURSO DE AGRICULTURA NATURAL E GESTÃO AMBIENTAL - 2015: AULA 8

ALIMENTOS LOCAIS E TRADICIONAIS
(Módulo 5 do Livro do Curso de Agricultura Natural)

Introdução

Vamos iniciar esse nosso módulo sobre alimentação natural citando um dos Ensinamentos de Mokiti Okada:

"(...) Dessa maneira, alimentos que contêm energia vital, não são apenas isentos de aditivos, sendo, por isso, seguros. Mas, também, proporcionam àqueles que os consomem uma maior energia vital. Os cereais e as hortaliças [hortícolas] que são cultivados pelo método da Agricultura Natural, mesmo guardados, conservam-se melhor do que os cultivados pela agricultura convencional. O motivo é que eles não possuem as toxinas dos adubos e a sua energia vital é mais forte.

Além dessas condições, para ser considerado alimento que contém energia vital, o princípio básico “o homem e a terra são inseparáveis” deve ser vivificado.
Está de acordo com as Leis da Natureza o homem alimentar-se de produtos da safra e da terra em que nasceu e cresceu.

Apesar de existir alguma diferença, dependendo do clima e das características da região, todos os alimentos são produzidos de maneira adequada às pessoas aí nascidas."
Extraído do livro: Colectânea Agricultura e Alimentação Natural. Africarte, 2012.

A alimentação de grande parte da nossa sociedade contemporânea está baseada em pouco mais de algumas dezenas de alimentos diferentes. Já mencionamos anteriormente que há cerca de 100 anos a humanidade conhecia e cultivava aproximadamente 10.000 espécies diferentes de plantas comestíveis. Hoje, segundo dados da FAO, esse número não chega a 200 espécies. Pior, destas quase 200 cerca de 30 plantas são responsáveis por 95% do gasto de energia necessária para a produção agrícola, ou falando de outra maneira, essas 30 plantas são as responsáveis por 95% de tudo o que se produz no mundo em termos de alimentos humanos e não-humanos, incluindo nessa ultima categoria, além dos animais, os veículos automotores que funcionam com combustíveis "verdes".

Numa aula que demos para um grupo de estudantes, pedimos para que todos eles relacionassem quais os alimentos que haviam consumido nos últimos três dias. Por exemplo, se alguém tivesse comido macarrão então devia reportar trigo; se comeu frango, então devia reportar milho e soja, já que esses dois cereais são a base da alimentação das aves, e assim por diante. O resultado desse pequeno exercício serviu para mostrar o quanto estamos dependentes de poucas dezenas de alimentos, pois ao final da aula, quando tabulamos todos os resultados, o número de alimentos diferentes dentre todos do grupo não chegou a 30! Faça o estudante mesmo esse exercício e reporte quais os alimentos que comeu na ultima semana. Temos certeza que, na média, a maioria de nós está "confinada" a um grupo pequeno de alimentos. E não é por acaso que a maioria absoluta desses alimentos são justamente aqueles nos quais a indústria alimentícia e agrícola investe bilhões de dólares todos os anos em pesquisas, principalmente nas chamadas tecnologias de ponta como a dos alimentos transgênicos.

Na contramão dessa tendência, existem ainda verdadeiros tesouros quase escondidos, muitas vezes, nos nossos próprios quintais e machambas. Muitos dos "matos" que nascem espontaneamente entre os canteiros de nossas culturas modernas ou naqueles espaços que deixamos de trabalhar por algum tempo, são na verdade alimentos riquíssimos em vitaminas e diversos nutrientes. A sua presença espontânea já indica uma forte aptidão, alcançada após milhões de anos de evolução natural, em retirar de determinado tipo de solo a força necessária para o seu desenvolvimento.  Essas culturas recebem, muitas vezes, a denominação de plantas alimentícias não-convencionais (PANC) ou ainda culturas órfãs, pois vêem sendo esquecidas, propositalmente ou não, ao longo dos anos. A grande maioria dessas culturas não faz parte de programas de pesquisa e desenvolvimento agrícola, apesar de se reconhecerem, baseados em dados da literatura científica, seus diversos benefícios e facilidades de cultivo. Pior ainda, muitas dessas culturas órfãs estão a ser extintas e dentro de pouco tempo só serão encontradas referências delas nos livros de história.

Já mencionamos também que nossa sociedade moderna é refém de uma cultura midiática, baseada em  elaborados programas de propaganda e marketing. Pergunte a uma pessoa qualquer qual a primeira imagem que lhe vem a cabeça quando você diz a palavra "salada" e perceberá que quase sempre na resposta vão estar relacionadas as folhas de alface, o tomate e a cebola, com algumas poucas variações de outros ingredientes complementares. Isso não é por acaso pois a televisão nos bombardeia diariamente com esse tipo de informação e até nos livros didáticos da escola encontraremos essas referências. 

Poucas pessoas sabem, por exemplo, que as folhas da batata-doce cruas dão excelentes saladas e que estas podem ser incrementadas com um grande número de outras folhas e raízes. Os próprios tomates tradicionais, grandes e vistosos, podem ser substituídos por seus parentes ancestrais, aqueles tomatinhos que nascem facilmente no quintal e demandam muitos poucos tratos culturais. As folhas de alface podem ser substituídas por folhas de vinagreira, uma planta de origem africana e adaptada aos rigores do clima árido e que nos fornece folhas saborosas e extremamente nutritivas. No geral, as plantas locais, por estarem melhor adaptadas, impõem muito menos pressão ao meio ambiente para serem produzidas e isso inclui consumirem menos água, poderem ser cultivadas em solos relativamente pobres em nutrientes, agüentarem os rigores do inverno ou do verão, etc.


A força natural dos alimentos locais

No século XVI os espanhóis chegaram ao que hoje conhecemos como Vale dos Incas, no Peru. Em busca do ouro, eles se depararam com uma sociedade bem organizada e desenvolvida e que tinha na agricultura a base de seu desenvolvimento. Os incas eram capazes de prover o sustento de sua sociedade cultivando cereais como diversas variedades de milho, legumes como os tomates e tubérculos como as batatas. Todas essas plantas têm sua origem na região andina e rapidamente foram levadas, inicialmente pelos conquistadores espanhóis, a várias partes do mundo. Consta que quando os espanhóis tiveram os primeiros contatos com os povos incas, estes tinham batatas armazenadas para até 15 anos, pois usavam uma técnica, que ainda hoje é conhecida por algumas daquelas comunidades remanescentes, que permitia a conservação daquele tubérculo desidratado por longos períodos de tempo. Porém, além das batatas, tomates e grãos de milhos, os incas também cultivavam outros tipos de plantas como os amarantos e a quinoa. Estas plantas, diferentes das outras que citamos anteriormente, tinham um desenvolvimento espontâneo e eram, muito provavelmente, de facílimo cultivo. Não precisou de muito tempo para os conquistadores espanhóis perceberem que esses alimentos fáceis de serem cultivados eram muito ricos nutricionalmente e deles vinham boa parte das forças dos guerreiros incas, e ainda que essa força dificultava muito a conquista e dominação daquele território. Ao longo das primeiras décadas após o contatos iniciais com os incas, os espanhóis levaram a cabo um verdadeiro processo de dizimação dos campos de amarantos e quinoa pois sabiam que guerreiros bem alimentos tendiam a ser mais fortes fisicamente e tinham mais facilidade de raciocínio. Essa história foi desenterrada há pouco mais de 30 anos quando um professor peruano, o Dr. Luis Sumar Kalinowisk, pesquisando o valor dos alimentos antigos, redescobriu a quinoa e o amaranto. Desde então, esses dois alimentos ganharam enorme exposição nos meios de comunicação e hoje em dia são considerados verdadeiros superalimentos.

O que pouca gente sabe no entanto é que o amaranto, esse alimento que vem ganhando fãs no mundo todo, faz parte de uma família de plantas cosmopolitas e que nascem praticamente sozinhos em qualquer espaço de chão. Até mesmo nas sarjetas e frestas de muros é possível encontrar plantas dessa família que em muitas regiões recebem nomes específicos. Em Moçambique, por exemplo, são conhecidos como tsec, em Angola como jimboa, no Brasil caruru e assim por diante. Infelizmente, também não é difícil encontrar referências a essas plantas nos manuais agrícolas convencionais como pragas e ervas invasoras, a despeito de suas excepcionais qualidades nutricionais.

E há ainda um outro ponto interessante. Percebemos que em Maputo a simples referencia pública ao consumo de tsec remete a uma espécie de preconceito pois muitos consideram que pessoas que comem esse tipo de alimento não possuem condições mais dignas de sobrevivência. Ou seja, por nascerem em qualquer lugar acabam sendo extremamente baratas e fazem parte da dieta das populações mais vulneráveis economicamente. Pelo menos em tese... O que descobrimos, com o tempo, é que na verdade muitas famílias chegam a "exportar" folhas de tsec para seus parentes que vivem no exterior,  inclusive na Europa. Esse alimento, além de nutritivo, é muito saboroso e faz parte de uma espécie de culinária tradicional. No entanto, muitas vezes por tabu, como já nos foi relatado, o seu consumo se dá de forma bem discreta, principalmente pelas famílias mais abastadas.

Assim como o amaranto, diversas outras plantas vêem sendo redescobertas nos últimos anos e felizmente já existem movimentos organizados em vários países cujo objetivo é o resgate de hábitos alimentares ancestrais e a preservação desse precioso recurso genético que são os alimentos locais e tradicionais. Do ponto de vista da Agricultura Natural e tendo por base os Ensinamentos deixados por Mokiti Okada, fica evidente que a valorização desse tipo de alimento está condizente com a filosofia de trabalho proposta por uma forma mais natural de cultivar o solo. E é fácil perceber isso quando lembramos, por exemplo, de uma discussão anterior nesse curso, na facilidade com que plantas típicas das regiões tropicais têm em se desenvolver mais quando comparadas às plantas oriundas de climas mais frios. Isso tem a ver com a melhor aptidão ao tipo de clima, regime de chuvas e qualidade do solo. Quando tentamos cultivar plantas oriundas de ecossistemas tipicamente diferentes daqueles em que estamos tentando trabalhar, devemos ter em mente que nossos sistemas tenderão a um aumento da sua artificialidade. Esse aumento da artificialidade não será necessariamente negativo mas implicará, quase sempre, em maiores demandas de recursos naturais.

Por esse raciocínio, portanto, quanto mais adaptada uma planta estiver a um determinado ecossistema mais facilmente ela poderá ser cultivada e mais natural tenderá a ser esse cultivo. Também precisamos levar em consideração o fato de que para se desenvolverem em seus ambientes originais, a maioria das plantas desenvolveram mecanismos de sobrevivência que nos poderão ser muito úteis. Existe um conceito repassado de geração a geração entre os remanescentes dos povos incas na América do Sul que ensina que quanto mais difíceis forem as condições de desenvolvimento de uma planta, mais energia vital terá os seus frutos. O raciocínio é bem lógico, pois mostra que toda a estratégia de desenvolvimento das plantas locais se dá no sentido de acumular o máximo de energia do seu ecossistema. Transportando esse raciocínio para a Agricultura Natural, fica fácil perceber o valor estratégico de prestigiar o cultivo e o consumo dos alimentos que naturalmente nascem, crescem e se desenvolvem numa determinada região.


"O homem e a terra são inseparáveis"

Em África, e em particular Moçambique, essa relação homem-terra é bem evidente. Por exemplo,  niamunda é uma expressão que retrata bem o espírito de manter as pessoas conectadas à terra através de suas machambas. Numa tentativa de tradução poderíamos dizer que o termo significa vamos à machamba e essa expressão é usada até mesmo como nome de escolas primárias, o que demonstra como a terra está ligada ao dia a dia das pessoas desde a mais tenra idade no país.

Por toda a África podemos encontrar referências da ligação do ser humano com a terra e esse elo parece nunca ter se rompido. De fato, é cada vez mais notória a sensação de que os camponeses, principalmente os africanos, estão ganhando mais consciência de seu papel social e principalmente ambiental e a preservação de hábitos culinários ancestrais vem de encontro aos anseios de milhares de agricultores espalhados pelo continente e também ao redor do mundo, ávidos por verem valorizados os seus esforços de trabalho com a terra. Por outro lado, sempre nos perguntamos como seria possível praticar uma agricultura concorde com as Leis da Natureza usando o raciocínio convencional de produção industrial de alimentos. A grande questão que vem à tona é o fato de que para atender a esse tipo de sistema de produção somos forçados cada vez mais a artificializar os nossos campos, a despeito dos nossos próprios sentimentos naturalistas.

Falando de outro modo, quando passamos a valorizar o alimento local, estamos de certa forma valorizando também a própria Natureza em sua totalidade global, dentro do princípio de agir localmente pensando globalmente. Recentemente demos um exemplo prático numa de nossas machambas a um grupo de visitantes. Naquele local semeamos uma espécies de rúcula silvestre que dá uma florada muito bonita e persistente. Além da rúcula, deixamos crescer algumas outras ervas que também dão flores silvestres muito apreciadas pelas abelhas e diversos outros insetos. Tivemos a oportunidade de mostrar ao grupo que favorecendo a Natureza, plantando e cultivando espécies locais e deixando que as plantas espontâneas se desenvolvam, recebíamos em troca a polinização eficiente de nossos canteiros de tomate. Como temos sempre a biodiversidade favorecida em nossas machambas e ainda valorizamos muitas das espécies de plantas locais, a Natureza acaba nos retribuindo com o desenvolvimento otimizado de algumas culturas "estrangeiras" como são os nossos tomates em Moçambique. Com os morangos acontece a mesma coisa nos nossos campos e a lista segue com as alfaces, batatas, ervas aromáticas e muito mais.
Não estamos pregando, no âmbito da prática da Agricultura Natural, o fim do cultivo de espécies agrícolas que não sejam originais de um determinado lugar. O que estamos a incentivar é a valorização daquilo que nasce naturalmente em cada região. Do ponto de vista natural, o cultivo de plantas que se adaptam melhor numa região irá favorecer todo o sistema, pois, como já dissemos, necessitarão de bem menos recursos naturais e artificialidades do manejo agrícola. Essa facilidade de cultivo, na nossa opinião, pode e deve ser usada como estratégia na produção de alimentos verdadeiramente saudáveis e ricos nutricionalmente. Vivificando a relação com os frutos naturais da terra, respeitando suas origens e ciclos de desenvolvimento, também estaremos vivificando a própria terra da qual nossas comunidades fazem parte. Esse princípio, ensinado por Mokiti Okada, certamente garantirá a força vital dos alimentos necessária para nutrir não apenas nossos corpos mas também nosso espírito, criando um verdadeiro ciclo virtuoso. Quanto mais valorizarmos nossos alimentos ancestrais e locais, mais nutritiva será nossa comida e mais fortes e saudáveis serão as pessoas. Quanto mais fortes e saudáveis, mais inteligentes serão e mais rapidamente perceberão as vantagens de trabalhar em conjunto com a Natureza e não conta ela.


Alimentos tradicionais ou não-convencionais

Na mesma linha de raciocínio usada para descrever os alimentos locais, também temos os chamados alimentos tradicionais. Muitas frutas, legumes e hortícolas se enquadram nessa categoria e de uma forma geral consideramos como tradicional todo o alimento, de origem local ou não, que exerce influência na alimentação de uma população tradicional. E também como no caso dos alimentos locais, normalmente não estão organizados enquanto cadeira produtiva propriamente dita, não despertando o interesse por parte de empreses de sementes, fertilizantes ou agroquímicos.

Contudo, o resgate e a valorização das variedades tradicionais de alimentos, em especial as hortícolas,  representam ganhos importantes do ponto de vista cultural, econômico, social e nutricional. Em muitas regiões do mundo, o cultivo desses alimentos é feito na sua grande parte por populações tradicionais (agricultores camponeses) que preservam o conhecimento acerca de seu cultivo e consumo, passando-o de geração a geração.
Os alimentos tradicionais podem ou não ser edáficos, ou seja, podem ou não ter origem local. Muitas vezes por sua capacidade intrínseca de adaptação aos mais variados climas e tipos de solo, muitos desses alimentos foram sendo distribuídos geograficamente e ao longo de gerações acabaram sendo incorporados à cultura de determinados locais.