ARTIGO
Colonização e independência em Moçambique: hábitos alimentares em mudança
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O sul de Moçambique, com uma população total de cerca de 4 milhões de habitantes, distribuída em três províncias (Maputo, Gaza e Inhambane), é uma região onde as pessoas têm mais ou menos os mesmos hábitos alimentares. Esta similaridade está provavelmente ligada ao fato de que antes da fixação portuguesa em Moçambique, durante o século XV, nesta região formou-se o segundo maior império da África, o Império de Gaza. Este império foi constituído pelos ngunis (um grupo populacional bantu do sul da África), que, como resultado de um conflito civil, foram empurrados para aquela região. Os ngunis, que eram guerreiros, ocuparam aquela região por volta de 1820, dominando, para isso, os povos que ali estavam instalados (os tsongas, vandaus, e bitongas).
A principal atividade econômica dos bantus era a agricultura de sequeiro e a criação de animais voltados para a subsistência. No âmbito das diversas estratégias de sobrevivência, que constituem os modos de vida da população, o uso dos recursos naturais não estava apenas limitado ao cultivo da terra, mas incluía também a caça e a coleta de produtos florestais e de plantas medicinais, entre outras atividades. As principais culturas ligadas à alimentação bantu incluíam os cereais (milho, sorgo, milheto, arroz); as leguminosas (diversos tipos de feijões e amendoim); a batata doce, o nhame, a mandioca e uma variedade de vegetais (hortaliças). No entanto, desde a chegada dos portugueses, no século XV, o País vem sofrendo profundas transformações políticas, econômicas e sociais, que afetam os sistemas alimentares.
Durante a colonização portuguesa, que durou mais ou menos cinco séculos, os portugueses impuseram uma mudança nos hábitos alimentares africanos, imposição que circunscreveu-se em um âmbito mais geral de "civilização". Como parte desse "processo civilizatório" foram impostos aos negros novos valores em relação à alimentação, como, por exemplo, o consumo de arroz ao invés de farinha de milho e a introdução de pratos feitos à base de óleos vegetais. Cabe realçar que a comida tradicional moçambicana é composta por um número diversificado de pratos feitos à base dos produtos da roça [machamba], sendo que entre esses pratos destacam-se, no sul, a matapa, cacana, xiguinha, xinguinhonguana, macoufo, nhangana, entre outros. Todos possuem uma característica em comum: o fato de que o amendoim pilado é o condimento principal do caril, o qual é sempre servido acompanhado da farinha de milho. Esse fenômeno de imposição de nova comida foi particularmente importante nas grandes cidades, como é o caso de Lourenço Marques (nome com que era conhecida a capital de Moçambique, Maputo, durante o período colonial).
Dentro dessa "política de civilização" dos nativos, buscava-se substituir/acabar gradualmente com a cultura africana. Nos anos 1960, em virtude do recrudescimento da luta de libertação do País, os portugueses começaram a criar uma série de oportunidades para os africanos. A educação foi uma das áreas que se beneficiou dessa mudança na política portuguesa. Nas escolas de ensino primário, que antes tinham sido concebidas para o ensino de crianças brancas, começou-se a admitir também crianças africanas, sob a condição de que se tornassem assimiladas. Isso significa que os pais das crianças africanas deveriam atestar, entre outras coisas, a capacidade de assegurar para os seus filhos uma merenda diária, composta por um sanduíche [sandes] contendo bife, manteiga, queijo e outros alimentos "modernos".
Por outro lado, no contexto da política de colonização, os portugueses também assinaram, já no século XX, um acordo com a República da África do Sul (RSA) para o fornecimento de mão-de-obra masculina moçambicana para as minas de ouro daquele País. Ao abrigo desse acordo, os portugueses recebiam em troca da mão-de-obra barras de ouro, importantes para a economia de Portugal. As implicações desse fenômeno sobre os sistemas agrários de Moçambique ainda não estão suficientemente estudados. No entanto, supõe-se que o processo de migração de mão-de-obra para as minas sul-africanas pode ter tido um grande impacto na oferta de mão-de-obra para a atividade agrícola familiar, uma vez que no sul de Moçambique, onde esse processo foi mais significativo, os homens é que são responsáveis pelas lavouras e destroncas (preparo da terra). Apesar disso, esse processo de envio forçado de mão-de-obra masculina para as minas sul-africanas parece ter sido importante para certa manutenção dos hábitos alimentares dos povos no sul de Moçambique.
Cabe lembrar que a África do Sul foi colonizada pelos holandeses e depois pelos ingleses, num processo que foi diferente do processo de colonização de Moçambique, particularmente no que diz respeito aos hábitos alimentares. Isso porque aos negros sul-africanos não lhes foi imposta uma mudança obrigatória dos hábitos alimentares, sobretudo no que se refere ao consumo de farinha de milho como prato principal. Vale salientar que nas companhias mineiras da África do Sul a farinha de milho, além de constituir a comida principal dos sul-africanos, é considerada mais forte que o arroz (comida de brancos) e, por isso, apropriada para aguentar o trabalho pesado requerido na mina. Desse modo, a manutenção do consumo de farinha de milho pelos homens que trabalhavam nas minas da África do Sul representou uma certa resistência ao consumo de arroz, imposto pelos portugueses.
Essa resistência ao arroz (visto como comida de branco) parece ter sido reforçada em Moçambique durante a década de 1980, quando o País esteve mergulhado no conflito civil que levou milhares de pessoas a refugiarem-se nos países vizinhos, principalmente Malawi, África de Sul e Zimbabwe, onde a farinha de milho é a comida principal.
Hoje, depois de um conflito que durou 16 anos, Moçambique continua a lutar pela reconstrução de seu tecido social, dilacerado naquele período. No entanto, a independência e o fim do conflito colocam aos moçambicanos novos desafios no que diz respeito aos hábitos alimentares, sempre influenciados pela colonização. Maciel e Menasche (2003), em artigo em que analisam o processo de conformação da "cozinha brasileira", referem que é comum que o processo de construção de uma cozinha em um país colonizado seja descrito como um somatório de influências. No entanto, esse processo é complexo e implica confrontos, associações e exclusões. Os pressupostos dessa análise residem na consideração de que a cozinha de uma sociedade indica seus valores.
Assiste-se hoje, no Moçambique independente, uma tensão entre a modernidade e a tradição: seria uma crise de identidade? Nota-se uma crescente perda de valores ligados aos costumes, sendo cada vez mais generalizada a idéia de que a comida preparada à base de óleos é melhor e tem mais valor do que as "comidas verdes" tradicionais (a matapa, a cacana, xiguinha, xinguinhonguana, macoufo, nhangana, etc.), geralmente associadas à idéia de pobreza. Cabe destacar que no "processo civilizatório" os portugueses também inculcaram nos moçambicanos a idéia de que as comidas verdes eram inferiores. Hoje, comer bem, nas diferentes classes sociais significa: (i) para os pobres, ter pelo menos pão, peixe, arroz e farinha de milho - nesta classe esses produtos podem ser intercalados com pratos tradicionais, desde que esses últimos não tenham uma grande regularidade; (ii) para a classe média, consumir com relativa regularidade batata inglesa, arroz, pão, frango, carne; (iii) para a classe alta, consumir com frequência e em quantidade, para além dos produtos da classe média, as lagostas, camarões, etc.
Observam-se, inclusive, constrangimentos em relação ao consumo de alimentos das classes inferiores, sobretudo em locais públicos. Por exemplo, alguém situado nas camadas médias sentir-se-ia envergonhado em comer feijão em um lugar em que as pessoas saberão que o fez (feijão é considerado comida de pobre) (4). Talvez seja por causa desses preconceitos que as pessoas não têm o hábito de comer na rua em Moçambique, prática que é mais comum nos países vizinhos, de colonização inglesa.
A expansão da energia elétrica e da televisão são fatores importantes que contribuem significativamente para uma rápida assimilação de novos valores da "modernidade" em relação à alimentação. De acordo com Garcia (2003:2), a adoção da dieta "afluente" (caracterizada pela diminuição no consumo de carboidratos e excesso do consumo de gorduras e açúcares) tem-se expandido, sobretudo em situações de prosperidade econômica (...) embora nos países mais pobres essas tendências de consumo estejam distribuídas diferentemente nos segmentos de classes sociais de acordo com as possibilidades de acesso aos bens de consumo, no plano simbólico os desejos de consumo por si só marcam uma inclinação a este perfil alimentar.
Como corolário dessa mudança nos hábitos alimentares e da falta de informação sobre o que é comer bem, assiste-se hoje, em Moçambique, sobretudo no meio urbano, o recrudescimento de doenças, como a diabete, a obesidade e as doenças circulatórias, que outrora eram vistas como sendo características dos países ricos.
De acordo com Fischler (1995:65), "a cozinha de um grupo humano pode conceber-se como um corpo de práticas, representações e de regras e normas que repousam sobre classificações e uma das funções essenciais desta construção é a resolução do paradoxo do omnívoro". O paradoxo do omnívoro é uma das particularidades com que o homem se vincula à comida: resulta de seu caráter biológico e caracteriza-se pela contradição entre sua capacidade de adaptar-se às mudanças - a liberdade de escolher, dentro duma diversidade, o que comer, mas ao tempo a dependência em relação a uma variedade de alimentos para retirar deles as energias que necessita para sua sobrevivência. Desde o ponto de vista dessas duas características contraditórias, o homem procura reduzir os riscos ligados à escolha dos alimentos através da cozinha.
A mudança de hábitos alimentares e em particular a ansiedade pelos alimentos "modernos" constitui um aspecto crítico nos países em desenvolvimento. A esse propósito, Sidney Mintz (2001: 8), em seu ensaio sobre comida e antropologia, comenta que "os povos africanos e latino-americanos parecem ansiar pela mesma dieta, e parecem prontos a adotá-la, se surgir a oportunidade".
Tendo em conta o quadro histórico e as recentes transformações em Moçambique, é difícil prever em que medida esta mudança dos hábitos alimentares vai consolidar-se. Deve-se realçar, por outro lado, que é interessante observar como, apesar dessa tendência de transformação dos hábitos alimentares, alguns aspectos culturais associados aos alimentos permanecem na consciência e práticas da população moçambicana. É o caso da valorização da comida para evocação dos antepassados, que não muda nem mesmo nas grandes cidades.
Aliás, esta evidência representa a contradição e o dilema da cultura moçambicana na contemporaneidade. Em nível político, aparentemente ainda não há uma coerência entre o discurso e a prática. Por exemplo, dado o contexto histórico e a diversidade de línguas maternas em Moçambique, o País foi recomendado pela UNESCO para desenvolver um sistema de ensino fundamental baseado nas línguas nacionais. No entanto, apesar de se ter consciência sobre a importância de tal processo para o desenvolvimento do ensino no País, parece haver ainda alguma relutância em levar a sério tal projeto. É de salientar que depois que o País tornou-se independente, houve uma preocupação política de valorização da cultura.
A educação alimentar e a direção de transformação para valorizar as comidas nacionais exigirão certamente um esforço de toda a sociedade moçambicana, incluindo governo e a sociedade civil, na conscientização da população sobre os bons hábitos alimentares. Aliás, comer bem não é apenas comer o que é dos outros (dos brancos, como comumente designado em Moçambique), mas também - e principalmente - a valorização das comidas tradicionais.
Por outro lado, geralmente as políticas que promovem o acesso à alimentação tratam a questão em termos de disponibilidade (produção), dando pouca importância às mudanças alimentares, às percepções, às representações, aos gostos e às práticas associadas à alimentação. Então, uma mudança efetiva na consideração das comidas nacionais deve contemplar uma abordagem multidisciplinar do consumo. Nas palavras de Oliveira e Thébaud-Mony (1997:207), a busca da análise multidisciplinar torna-se, portanto, ainda mais necessária para a interpretação da evolução dos hábitos alimentares, apesar das dificuldades metodológicas, sobretudo para compreender os fatores implicados e, em seguida, definir estratégias e mecanismos de ação nesta área fundamental que envolve a alimentação e a saúde pública.
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